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2020 foi o ano dos celulares velhos no Brasil

Consumidor optou por aparelhos seminovos em cenário de pandemia, alta do dólar e incertezas econômicas

Foto do author Guilherme Guerra
Foto do author Bruna Arimathea
Por Guilherme Guerra e Bruna Arimathea
Atualização:
Saturação de smartphones no Brasil abasteceu mercado de seminovos Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Não faltaram opções de novos smartphones no Brasil em 2020: teve o iPhone 12, o Galaxy Fold 2 e linhas populares da Motorola e Xiaomi — e, no começo deste ano, já temos o Galaxy S21 e o Moto G100. Para muita gente, porém, o período de pandemia não foi o momento para trocar de smartphone. Com a alta do dólar, a crise econômica e as incertezas causadas pela covid-19, 2020 foi o ano do celular velho no País. Não apenas houve um encolhimento do mercado de smartphones novos: quem precisou substituir passou a olhar com mais carinho para aparelhos usados. 

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A desconfiança do consumidor se justifica. Em 2020, houve uma tempestade perfeita sobre o mercado de smartphones no Brasil. A alta do dólar, de quase 30% no acumulado do ano, começou a ser repassada para os celulares — mesmo quando montados no País, os aparelhos contam com componentes importados, como chips de processamento e de memória. Um exemplo é o Moto G Plus, da Motorola. Em 2019, o Moto G8 Plus custava R$ 1,7 mil. No ano passado, o Moto G9 Plus foi lançado por R$ 2,5 mil. Agora, o Moto G100, o “substituto” do Plus, chega por R$ 4 mil. Claro, a cada nova geração, os fabricantes incluem componentes mais novos, normalmente mais caros, mas as marcas admitem que o aumento atual está atrelado à alta da moeda americana.   

Além disso, a pandemia jogou muitas incertezas sobre a economia. A taxa de desemprego chegou a 13,5%, o que também fez o consumidor repensar compras de eletrônicos. O resultado disso foi a queda nas vendas de celulares novos. Segundo a consultoria IDC, o mercado de smartphones encolheu 8% em 2020 (a última vez que houve retração no País foi em 2018, também de 8% ante o ano anterior, e 2019 viu uma alta de 8,8%). E poderia ter sido pior: no início da pandemia, as projeções eram de retração de 19% nas vendas. Segundo Renato Meireles, analista da IDC Brasil, o auxílio emergencial ajudou a amenizar a queda. 

“O preço de um celular novo é comida para dois meses em casa”,  diz Josyel Araujo, 27. O professor de educação física trabalhou como entregador de app durante a pandemia e comprou dois celulares usados no período: um para trabalhar, mais exposto à rua e sem seus dados pessoais cadastrados, e outro para uso pessoal, que ficava em casa e tinha contas de banco e outras informações. 

Necessidade

Por outro lado, a pandemia forçou a população a encarar a digitalização de serviços como alimentação, educação e entretenimento, aumentando a demanda por dispositivos de tecnologia. Por motivos profissionais e pessoais, ter um celular conectado virou requisito mínimo para atravessar o período. Mas, em tempos de vacas magras, as pessoas preferiram aparelhos de segunda mão, em um movimento que lembra o setor automotivo. 

A fotógrafa manauara Caroline Lins, 22, optou por esse caminho. A pandemia impediu que ela realizasse ensaios de fotografia presencialmente e, em isolamento, ela usa o Facetime, recurso de videochamadas do iPhone, para guiar os seus modelos em poses e iluminação. O problema é que, com uso mais intenso do smartphone, a memória de 32 GB do seu iPhone 6S, aparelho lançado em 2015, não dava conta do espaço de novas fotos tiradas. Era preciso trocar de aparelho. 

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A escolha foi simples: em vez de correr atrás de um aparelho novo, ela preferiu investir em um usado. “Pensei que, se eu pesquisasse, poderia fazer um bom negócio e economizar uma boa grana”, conta. No fim, ela comprou de um vendedor autônomo um iPhone 8 de 256 GB, a capacidade máxima do modelo. Na transação, Caroline diz que economizou cerca de R$ 1 mil perto do preço vendido em aparelhos novos no varejo.

A fotógrafa Caroline Lins não podia ficar sem celular durante a pandemia de covid-19 e por isso preferiu comprar um smartphone de segunda mão Foto: Arquivo Pessoal

Lojas de usados

A escolha por aparelhos usados foi sentida por quem atua nesse mercado. Fundada em 2014, a startup Trocafone viu as vendas de aparelhos crescerem em 60% no ano passado em comparação com 2019. A expectativa para 2021 é continuar o crescimento na casa dos dois dígitos, sem a empresa especificar qual é a projeção.

“Há 5 anos, as pessoas tinham receio de comprar um smartphone usado porque ninguém oferecia garantia, diagnóstico ou reparo. Comprava-se sem conhecer a procedência. Mas smartphone é igual ao mercado de carros: você não sabe as condições do produto, mas compra o seminovo com garantia de concessionária e de uma empresa que responde pelo problema”, explica o CEO da Trocafone, Guille Freire. “Está mudando a visão de consumo do consumidor.”

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O negócio parece estar funcionando: as reclamações da Trocafone em plataformas como o Reclame Aqui são baixas e o índice de solução médio de problemas é de 91,1%. Além disso, outras empresas do ramo surgiram, como a Brused e Yesfurbe — esta, ao contrário das concorrentes, não oferece garantia.

'Mercado' de roubados é problema

Um percalço encontrado no segmento de seminovos é o risco de alimentar o mercado de roubados ou furtados. Para evitar essa dor de cabeça, o consumidor deve suspeitar de preços muito abaixo do que se encontra em produtos semelhantes, inclusive fugir de anúncios de celulares “bloqueados” — nos iPhones, isso significa que a pessoa cujo celular foi roubado fez o bloqueio de todo o software como medida de segurança, impedindo que aparelho tenha qualquer tipo de usabilidade para terceiros. E, sempre que possível, exigir a nota fiscal original da aquisição — hoje em dia, as lojas costumam inclusive enviar uma nota fiscal eletrônica, facilitando a preservação do documento.

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Outro passo essencial é o interessado, antes de efetivar o pagamento e já com o celular em mãos para o teste de condições, procurar o IMEI do celular, espécie de RG único certificado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em todo o País. O jeito mais fácil de encontrar o código é digitar *#06# no próprio telefone, mas é possível buscá-lo nos ajustes do Android e iPhone. Com o número em mãos (14 dígitos), basta ir ao site consultaaparelhoimpedido.com.br, da própria Anatel, e checar a situação do dispositivo. A Trocafone, por exemplo, afirma que faz esse mesmo procedimento com todos os smartphones comercializados na empresa.

Nada disso dá certo, no entanto, se a vítima do aparelho roubado não prestar queixa junto às autoridades. “Por isso é necessário que a população tenha consciência de que, logo após furto ou roubo, a vítima faça registro de ocorrência na delegacia de polícia, informe o número IMEI para realizar o bloqueio”, explica Guilherme Farid, chefe do gabinete do Procon-SP. Vender ou adquirir objetos roubados, com ou sem consciência da origem, é crime de receptação, com penas de 1 a 8 anos de cadeia, diz.

“O mais importante é tomar cuidado, porque o desconto pode sair caro”, avisa Fernando Meirelles, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). 

Ascensão dos seminovos

Meirelles, no entanto, reconhece o potencial do setor com o surgimento de iniciativas. Para ele, incentivos para comprar smartphones de segunda mão surgem quando há prova de que o aparelho está em bom estado e tem garantia, fatores que se aproximam ao que é oferecido por celulares novos. “Esse mercado vai começar a aparecer em mais lojas porque o volume de celulares em circulação é muito grande”, diz. Ele lembra também que o País tem alta saturação de celulares, de cerca de mais de 1,5 celular para cada habitante. Ou seja: existe um grande estoque para o mercado de segunda mão.

Esse imenso volume de aparelhos no País, diz Renato Meireles, da IDC Brasil, representa o amadurecimento do mercado. Poucos consumidores são marinheiros de  primeira viagem: a maioria já está em sua terceira, quarta ou quinta geração de smartphones. Isso torna o cliente mais exigente ao escolher os aparelhos, geralmente em busca de mais capacidade de memória de armazenamento ou melhor qualidade de câmera, por exemplo.  

Não à toa, diante da queda de 8% do mercado em 2020, a IDC aponta que o ticket médio dos celulares cresceu 24% no mesmo período, o que indica que as pessoas podem ter comprado menos celulares, mas quem comprou pagou mais caro — seja pelo dólar mais salgado, seja porque investiu mais no “upgrade”.

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“Com o aumento do ticket médio e o amadurecimento de produtos mais premium, as vendas de usados são estimuladas”, aponta Meireles. “O consumidor tem poder aquisitivo baixo e o sonho de consumo é o smartphone premium e superpremium. E, como o mercado oferece mais esse tipo de produto, isso estimula a venda de aparelhos de segunda mão. É uma tendência global”, diz.

*É estagiária sob a supervisão do editor Bruno Romani

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