Está na hora da Apple lançar um smartphone 'menos viciante'

Efeitos dos celulares na cognição, produtividade e até mesmo na educação das crianças dessa geração podem ser irreversíveis, preocupam-se os críticos da tecnologia

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Por Farhad Manjoo 
Atualização:
Como a poluição do ar ou a invasiva publicidade online, a dependência de tecnologia é um problema de ação coletiva causado por incentivos mal alinhados. Foto: Doug Chayka/NYT

Não é culpa da Apple que você se sinta escravizado pelo seu telefone. Mas a empresa que deu ao mundo o smartphone moderno tem uma oportunidade perfeita este ano para criar uma brava e inovadora nova abordagem para o dispositivo: um telefone que encoraje você a usá-lo com mais atenção, mais deliberadamente – e bem menos. A “dependência” tecnológica é uma crescente preocupação nacional. 

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Coloco a palavra “dependência” entre aspas porque a exata atração que nossos telefones exercem sobre nós não é a mesma que a das drogas ou do álcool. A questão não é nem nova: pesquisadores que estudam como usamos a tecnologia digital têm advertido há anos sobre os possíveis efeitos negativos dos celulares sobre a nossa cognição, psique e bem-estar. O que há de novo são as pessoas que aderiram às fileiras dos preocupados. 

Recentemente, uma série de luminares da tecnologia, incluindo vários ex-funcionários do Facebook, argumentaram que não somos páreo para o sofisticado maquinário de engajamento e persuasão que está sendo incorporado em aplicativos de smartphones. 

Os seus medos são múltiplos: eles estão preocupados com distração, produtividade, em como as redes sociais alteram nossas vidas emocionais e relacionamentos e o que elas fazem às crianças. É difícil saber o que fazer dessas confissões de arrependimento. 

Vamos lá, gente: vocês nos deram essas maravilhosas máquinas, vocês ganharam bilhões de dólares pela sua onipresença, e agora nos dizem que isso é ruim? Além do mais, o que podemos fazer a respeito disso? Como a poluição do ar ou a invasiva publicidade online, a dependência de tecnologia é um problema de ação coletiva causado por incentivos mal alinhados. 

As empresas que ganham dinheiro com a sua atenção – ou seja, aplicativos sustentados por anúncios como Facebook, Instagram, Snapchat e YouTube – agora empregam exércitos de pessoas que trabalham com supercomputadores para conectá-lo cada vez mais profundamente aos seus serviços. Claro, devemos convocá-los a agir de forma mais ética – o Facebook, por sua vez, disse que está disposto a perder dinheiro para melhorar o bem-estar de seus usuários –, mas sou cético de que eles consigam conter seus interesses econômicos. 

A regulamentação governamental e maior moderação da parte dos usuários também podem ajudar, mas a primeiro é improvável e a última insuficiente. Então, o que sobra? A mesma empresa que sempre parece dar as caras quando é hora de passar para uma nova era de tecnologia: a Apple. 

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Responsabilidade. Fui levado a pensar sobre a responsabilidade da Apple na semana passada, quando dois grandes investidores escreveram uma carta aberta pedindo à empresa que refletisse mais quanto aos efeitos de seus produtos sobre as crianças. Inicialmente, eu estava inclinado a descartar a carta como um golpe de publicidade; se você está preocupado com crianças e tecnologia, por que não ir atrás do Facebook? 

Mas quando liguei para vários especialistas, percebi que eles concordavam com os investidores. Claro, eles disseram, a Apple não é responsável pelos excessos do negócio de anúncios digitais, mas tem uma responsabilidade moral - e um interesse comercial - no bem-estar de seus clientes. E há outra razão, mais importante, para a Apple aborde a questão da dependência da tecnologia: isso porque provavelmente faria um trabalho elegante ao debruçar-se sobre o problema. 

“Acho que este é o momento em que eles devem ir em frente”, disse Tristan Harris, ex-especialista em assuntos éticos do Google, que agora administra o Time Well Spent (tempo bem gasto, em tradução livre), uma organização que trabalha para melhorar o impacto da tecnologia sobre a sociedade. “Na verdade”, acrescentou Harris, “eles podem ser nossa única esperança”. 

Em parte, porque o modelo de negócios da Apple não depende do vício em tecnologia. A empresa ganha a maior parte do seu dinheiro vendendo dispositivos premium com elevadas margens de lucro. Sim, ela precisa ter certeza de que você considere seu telefone o suficiente para comprar o próximo, mas depois de comprar seu telefone e contratar alguns de seus serviços premium, a Apple realmente não precisa de você para exagerar isso. 

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Na verdade, porque não pode tornar infinita a vida útil da bateria, a Apple provavelmente ficaria bem se você desse um tempo ao seu telefone por alguns instantes. No entanto, mesmo que a Apple não faça parte do negócio de anúncios, ele exerce um grande controle sobre ele. 

Toda empresa de tecnologia precisa de uma presença no iPhone ou no iPad; o que significa que a Apple pode estabelecer as regras para todos. Com uma única atualização para o seu sistema operacional e sua loja de aplicativos, a Apple pode conter alguns dos piores excessos em como os aplicativos monitoram e notificam você para mantê-lo engajado – como fez, por exemplo, permitindo os bloqueadores de anúncios em seus dispositivos móveis. 

E como outros fabricantes de telefones inteligentes tentam copiar as melhores invenções da Apple, o que quer que a empresa faça para conter nossa dependência de nossos telefones seria amplamente imitado. Outra área na qual a Apple é boa é em marketing, e suspeito que poderia fazer um monte de anúncios diáfanos, mostrando as pessoas ficando mais tempo sem seus iPhones e iPads, desconectando-se deles um pouco mais. 

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Observe que a empresa de Tim Cook já vende um dispositivo, o Apple Watch, cujo marketing exalta a magia de deixar de lado seu telefone. Bem executada, uma campanha que promova os benefícios de uma abordagem mais deliberativa à tecnologia não se revelaria como interesse próprio, mas de acordo com a melhor visão da Apple de si mesma - como uma empresa que atende os interesses da humanidade em um setor de certa forma frio e às vezes desumano. 

“A forma como convivemos com a tecnologia é a questão cultural do próximo meio século”, disse James Steyer, fundador e diretor executivo da Common Sense Media, um grupo sem fins lucrativos que estuda como crianças são afetadas pelos meios de comunicação. Ele sugeriu que o sentimento está maduro para que a Apple possa acessar. “É algo com o qual todos se preocupam – seja um republicano ou democrata, liberal ou conservador, seja em São Francisco ou Biloxi, no Mississippi, você sabe que você e seus filhos fazem parte da corrida armamentista por atenção” ele disse. 

A Apple divulgou um comunicado na semana passada dizendo que se preocupava profundamente “com a forma como os nossos produtos são usados e o impacto que eles têm sobre os usuários e as pessoas ao seu redor”, acrescentando que tinha alguns estudos sobre dependência encaminhados.A Apple dificilmente fala sobre futuros produtos, por isso recusou-se a dar detalhes sobre algumas de suas ideias, quando liguei questionando a empresa. Esperemos que esteja trabalhando em algo grandioso. /Tradução de Claudia Bozzo

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