Casal desenvolve game após perder filho para o câncer

Lançado em janeiro para PC, 'That Dragon, Cancer' conta a história da vida de Joel Green, diagnosticado com um tumor no cérebro após seu primeiro aniversário

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Por Bruno Capelas
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O pequeno Joel Green viveu quase sempre à espera de um milagre. Quando tinha pouco mais de um ano, os médicos lhe deram apenas alguns meses de vida após diagnosticar um tumor em seu cérebro. Contrariando as expectativas dos médicos, o garoto sobreviveu por quatro anos, passando por cirurgias e tratamentos rigorosos como a quimioterapia. Para lidar com todo o processo, Ryan Green – o pai de Joel – resolveu criar um jogo sobre a experiência.

Lançado em janeiro, That Dragon, Cancer é uma versão bastante subjetiva e interativa da história de Joel, que morreu em 2014, quatro anos depois de começar sua luta contra o câncer. “Nós queríamos contar a história de um milagre, mas depois que Joel morreu, o game passou a ser um memorial sobre ele”, diz Ryan Green ao Estado.

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Desenvolvedor de games, Ryan teve a ideia de fazer o jogo após passar uma noite com o filho no hospital sem consegui-lo fazer parar de chorar. “Eu só chorava e rezava, até o momento em que Joel consegue dormir, como mágica”, conta. A cena está no jogo, e é uma amostra do poder imersivo de That Dragon, Cancer: durante essa passagem, todos os comandos do jogador são congelados, e não se pode fazer nada até que Joel pare de chorar.

É por sua experiência extremamente pessoal que That Dragon, Cancer chama a atenção: jogá-lo é quase como uma forma de entender como é perder um filho, em uma experiência que pode ser devastadora para muitos jogadores – mas fortalecedora para outros. “That Dragon, Cancer não foi criado para oferecer respostas, mas para dar conforto”, diz Green. “Quando você divide uma história pessoal com o mundo, todos nós percebemos que não estamos tão sozinhos assim, e isso pode ser reconfortante”.

Disponível para PCs por R$ 28, That Dragon, Cancer é um projeto de família: a mãe de Joel, Amy Green, é a principal roteirista do projeto, enquanto os irmãos do garoto (quatro, ao todo) participam como personagens e também na dublagem.

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Na entrevista a seguir, Ryan Green fala sobre o processo de criação do game, e também sobre o rótulo de jogos “empáticos” – um gênero de games que colocam o jogador dentro de experiências muito íntimas. O desenvolvedor também fala sobre como lida com as lembranças do filho toda vez que fala sobre That Dragon, Cancer. “Quando alguém morre, sua memória começa a ficar meio enevoada. Isso não acontece comigo: é uma honra ter como meu trabalho a tarefa de lembrar dele”, diz.

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Por que você decidiu fazer um jogo sobre a luta do seu filho contra o câncer? Joel esteve doente desde que tinha um ano de idade. No final de 2010, um médico nos disse que seu câncer era terminal e que ele tinha não mais que alguns meses de vida. Felizmente, o tumor respondeu aos tratamentosmelhor do que os médicos esperavam. Um ano se passou, mas mais tumores surgiram. Quando eu comecei a fazer o jogo, em 2012, já fazia um ano e meio que ele era um paciente terminal, e estávamos apenas tentando expressar como estávamos nos sentindo. Nossa família vivia em uma sombra, à espera de que algo ruim acontecesse, mas ele continuava vivo. Nós queríamos contar a história de um milagre no jogo. That Dragon, Cancer foi o melhor jeito que poderia me expressar e dividir minha própria história.

Como você começou a fazer That Dragon, Cancer? Sou um programador e comecei a desenvolver o jogo enquanto Joel ficou doente. Eu sempre me interessei por arte, por videogames e por cinema.Originalmente, o jogo era para ser só uma peça interativa, mais poética e abstrata, e depois decidi que eu deveria transformá-lo em um game. Houve uma noite em que eu estava com Joel no hospital, depois de uma quimioterapia, e nada que eu fizesse conseguia fazer com que ele parasse de chorar. Isso me levou ao desespero. Eu só chorava e rezava, até o momento em que Joel conseguiu dormir. Existe um momento sobre isso no jogo. É um estranho momento no videogame, em que nenhuma das mecânicas funciona, mas ainda assim ele consegue dormir.

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Depois que Joel morreu, você fez uma pausa no desenvolvimento do jogo. Como foi voltar a trabalhar nele?That Dragon, Cancer foi a única coisa que eu consegui continuar fazendo depois que Joel morreu. Nós esperávamos que ele vivesse, e o jogo devia contar essa história, mas o projeto teve de mudar de foco. Tivemos de contar uma história diferente, e foi necessário reprogramar todo o jogo. Se antes devia narrar um milagre, o game acabou se tornando um grande memorial, sobre como nós o amávamos e como ele era incrível.

Após o lançamento de That Dragon, Cancer, você deve ter falado muitas vezes de Joel. Imagino que deva ser uma experiência muito difícil para você lembrar dele todas as vezes em que dá uma entrevista… Quando as pessoas morrem, a gente para de falar sobre elas depois de um certo tempo. Joel é uma das minhas alegrias, e fico honrado em poder continuar falando sobre ele. Ele mudou completamente a nossa família e a mim, e é incrível poder falar disso. Não me importo em ser lembrado dele. Quero lembrar dele a todo momento. Quando alguém morre, sua memória começa a ficar meio enevoada e você começa a esquecer muitas coisas. Isso não acontece comigo. É uma honra ter como meu trabalho a tarefa de lembrar dele.

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Você usou a voz dos irmãos de Joel para dublar o jogo. Como era a relação deles com o irmão? Eles tinham noção da doença? Joel ficou doente quando os irmãos dele ainda eram todos crianças – eles ainda são, na verdade. Joel esteve doente durante toda a vida deles, mas a coisa mais profunda sobre sua doença é que todos cuidavam um dos outros. Você não imagina como foi bonito ver a alegria dos garotos quando Joel conseguiu andar. Era incrível ver as crianças explicando todas as coisas que Joel sabia fazer. Eles participaram das vozes do jogo, porque esse foi um projeto de família. Foi a maneira como todos nós encontramos para honrar a memória de Joel. (respira fundo). Eles eram irmãos muito próximos, e essa experiência os aproximou ainda mais.

Seu jogo é uma experiência pessoal, mas quando eu o joguei, tive a impressão de que ele poderia ser importante para quem está em um momento de luto. Você compartilha essa impressão? Espero que sim. Acredito que… (respira fundo) o game não foi criado para oferecer respostas. Ele foi criado para dar conforto. Essas questões que nós passamos e foi assim que encontramos alegria e memória sobre o jogo. Esse jogo tem ajudado as pessoas a falar sobre as pessoas mais importante de suas vidas. É um jogo que ajuda memórias e sentimentos a serem despertos, e isso ajuda. Se alguém compartilha sua dor ou sua esperança por causa do meu jogo, é muito bom. Quando você divide uma história pessoal com o mundo, todos nós percebemos que não estamos tão sozinhos assim, e isso pode ser reconfortante.

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Muita gente tem chamado jogos como That Dragon, Cancer, de games empáticos. Como você se sente com esse rótulo? Parece que descreve um jogo como uma mecânica. É mais uma questão de gênero: são jogos com intimidade. Para mim, intimidade é dividir uma experiência pessoal, com segredos, medos e esperanças. Quando usamos o meio dos videogames para mostrar nossos pensamentos pessoais ou nossas dores, ou nossas alegrias, isso é jogar junto. Isso é intimidade. É como criar uma biografia interativa, que é muito mais divertida do que uma simples autobiografia.

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