Como o jogo GTA V virou espaço para artistas e manifestantes

Game de mundo aberto dá espaço para manifestações artísticas e políticas em cenário que tudo parece sempre à beira do caos

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Por Hart Fowler
Atualização:
Manifestantes de Hong Kong também ocuparam espaços dentro de Los Santos Foto: GTA

Em dezembro de 2019, o enfrentamento entre os manifestantes de Hong Kong e a tropa de choque chegou às ruas de Los Santos. A cidade de Los Santos, versão fictícia de Los Angeles, e a região do condado virtual de San Andreas, onde a cidade se situa, são o cenário do título Grand Theft Auto V, lançado para os videogames em 2013. Foi ali que centenas de jogadores, representando os dois lados de um prolongado conflito geopolítico, se enfrentaram em uma demonstração do teatro político de massas sem precedentes no universo dos jogos eletrônicos. Foi uma ação ensaiada ocorrendo em tempo real, uma realidade geopolítica espelhada no espaço virtual.

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GTA V é um jogo de objetivos abertos situado em um mundo simulado. Em jogos desse tipo, os participantes têm a liberdade de extrapolar os limites das missões criadas pelos idealizadores do título, explorando e interagindo com o espaço virtual ao bel prazer, buscando os objetivos de seu interesse individual. Essa flexibilidade conferiu a alguns usuários a capacidade de distorcer o mundo e suas regras, criando obras de arte sérias, algumas das quais foram recebidas em museus de todo o mundo.

O universo criado pela Rockstar, desenvolvedora responsável pela série Grand Theft Auto Series, se presta aos abusos por parte dos usuários. Cada vez mais, os jogos da empresa apresentam mundos quase completos, mas mundos que, ao mesmo tempo, sempre parecem estar a um passo do caos total. 

Pode-se provocar a polícia e dar início a uma perseguição, roubar praticamente qualquer modelo de veículo e tentar acrobacias, ou cometer atos de violência aleatória contra os transeuntes virtuais controlados pela inteligência artificial que habitam o espaço virtual. Se desejar, o jogador também pode visitar os cartões-postais, obedecer às leis de trânsito e acompanhar o pôr-do-sol. A dedicação da Rockstar aos mínimos detalhes - seja o reflexo da luz do sol em um arranha-céu ou o vento soprando na grama do interior - amplifica o realismo único do jogo.

Mas quem constrói um mundo virtual quase perfeito não deve se surpreender quando o mundo real invadir esse espaço. Quando a loja de complementos para o jogo passou a oferecer opções de vestuário bem semelhantes às peças usadas pelos manifestantes de Hong Kong, os jogadores dessa cidade perceberam. 

Vestidos de preto e equipados com os novos capacetes amarelos e máscaras de gás, jogadores vestidos como manifestantes de Hong Kong tomaram as ruas de Los Santos. Armados com coquetéis molotov, os jogadores coordenaram ataques planejados cujo objetivo parecia ser a depredação das estações de metrô e a destruição dos veículos da polícia, usando-os como alvos substitutos para manifestar sua frustração com as restrições estratégicas impostas ao sistema de transporte público de Hong Kong.

Atraindo milhões de manifestantes, o maior protesto público de Hong Kong foi basicamente pacífico. Não foi o observado em Los Santos. Quando defensores do governo chinês se deram conta do que estava acontecendo, entraram para a briga nas ruas de Los Santos vestindo uniformes da polícia. Parece que o realismo pode abrir as portas para a manifestação de tensões que talvez não se materializem por completo no mundo real.

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“O que ocorreu com Hong Kong e a China no GTA V é mais um alerta soando”, disse o artista Alan Butler, que trabalha com suportes digitais, referindo-se à mistura entre os mundos real e digital. “A tragédia é que isso só aparece no jogo porque nosso mundo está f---ido."

Arte dentro dos games já acontece há anos

Quando os manifestantes de Hong Kong levaram o que acontecia fora de suas casas para as ruas virtuais de Los Santos, eles se juntaram a uma linhagem de artistas do jogo que há décadas vêm redefinindo os videogames enquanto ferramenta de expressão política e artística. O ativista e artista digital Joseph Delappe, por exemplo, foi atraído para o GTA V como ambientação para um projeto comentando os homicídios cometidos com arma de fogo nos Estados Unidos.

Sua mais recente obra nesse suporte, Elegy, funciona como um drama cinematográfico. Transmitido ao vivo na plataforma Twitch, o projeto documentou os 14.730 assassinatos ligados a armas de fogo cometidos nos EUA entre 4 de julho de 2018 e 4 de julho de 2019. Como? Com uma câmera posicionada rente ao chão, movendo-se por uma versão modificada do jogo na qual personagens controlados pelo computador encenam todos os dias os episódios de tiroteios em massa ocorridos ao longo de um ano.

Obra de arte de Joseph Delappe usava jogo de recrutamento do Exército Americano para fazer manifestação pacifista Foto: Joseph Delappe

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Delappe descreveu o projeto como exercício de visualização de dados. O hiper-realismo da violência e da ambientação urbana de GTA V fazem com que a obra ecoe de maneira mais poderosa do que as estatísticas ou o noticiário.

Para o artista Brent Watanabe, a sensação de jogar o título em cuja produção a Rockstar Games investiu US$ 250 mil foi como ter “um estúdio de cinema completo em casa”. Com o Deer Cam, Watanabe usou esse estúdio bilionário a serviço do absurdo. Ele modificou um cervo, programando-o para vagar por conta própria em San Andreas. A obra encontrou público, somando mais de um milhão de visualizações no mês que ele transmitiu o Deer Cam na plataforma Twitch (o Twitch pertence à Amazon, e o diretor executivo da empresa, Jeff Bezos, é dono do Washington Post).

“Imaginei o cervo como uma espécie de Buster Keaton, debatendo-se na luta para vencer esse ambiente”, disse Watanabe, referindo-se ao ator de filmes mudos dos anos 1920. “Mas, diferentemente de um filme ou programa de TV, quando não estamos assistindo no Twitch, o cervo continua vagando, tropeçando e trombando. É muito engraçado, triste e trágico."

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As obras de Butler, Delappe e Watanabe usaram as capacidades de modificação do GTA V offline, e agora habitam a eternidade do Twitch e outros serviços de transmissão via streaming - ou são mostradas em exposições de museu. Os protestos virtuais de Hong-Kong, por outro lado, ocorreram ao vivo, e só foram testemunhados pelos próprios jogadores. Na verdade, é difícil encontrar imagens capturando a tela dos participantes, documentando dentro do próprio jogo a revolta, como faz a obra de Butler.

Um dos motivos para tanto pode ser o fato de a revolta online ter ocorrido de maneira orgânica: o lançamento de peças de vestuário conhecidas foi toda a motivação que os jogadores precisaram para assumir o papel de manifestantes.

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Claro que essa não foi o primeiro exemplo de jogos online cujo uso foi desviado das intenções de seus criadores. Há uma linhagem de ativistas/artistas "intervencionistas" cuja obra consiste em perturbar o funcionamento típico de um jogo para mandar um recado.

Delappe é um pioneiro desse formato. Em sua obra Dead-in-Iraq [Morto-no-Iraque], ele entrava no jogo de tiro em primeira pessoa America's Army – lançado como ferramenta de recrutamento pelo exército americano – e jogava como um mártir pacifista. Ao ser invariavelmente abatido, Delappe inseria no bate-papo do jogo o nome de um dos 4.484 soldados mortos no conflito real.

“A obra é essencialmente uma homenagem passageira online aos militares mortos nesse conflito ainda em andamento”, escreveu Delappe a respeito da obra, encerrada quando os EUA declararam o conflito oficialmente encerrado em 2011. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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