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Dos jogos para as pistas: como um gamer se tornou piloto na principal categoria de acesso à F-1

Cem Bolukbasi, de 24 anos, é o primeiro piloto do mundo a fazer a transição de competições de e-sports para as pistas reais; piloto contou sobre mudança de carreira ao ‘Estadão’

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Por Bruna Arimathea
Atualização:
Cem Bolukbasi já competiu por equipes de e-sports da Red Bull e da McLaren Foto: Twitter/Reprodução

Em março, a largada da nova temporada da Fórmula 2, principal categoria de acesso para a Fórmula 1, vai estar um pouco mais próxima dos jogos de videogame, que viram ligas de e-sports voltadas ao automobilismo crescerem nos últimos anos. 

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Atrás do volante, com o pé no pedal e olho nas luzes, o piloto turco Cem Bolukbasi, de 24 anos, vai ser um dos 22 aspirantes tentando mostrar talento. Porém, ao contrário dos rivais, ele não passou boa parte da vida em pistas de corrida — não no mundo real. Bolukbasi começou a carreira em simuladores de corrida e se tornará o primeiro piloto a sair do mundo dos games direto para as pistas reais. 

Correndo pela equipe Charouz, Bolukbasi vai ter o desafio não apenas de provar o quão fiel pode ser um game às pistas reais, mas também se tem as mesmas habilidades de um piloto de formação no asfalto. A empolgação é nítida — a confiança, também. Isso porque, com a experiência das ligas oficiais de Fórmula 1 online, o turco já conhece muitas das ‘manhas’ para conduzir um monoposto de verdade. 

“Os pontos básicos são bem similares, porque correr é esterçar o volante e operar os pedais, que são iguais no simulador e na vida real. Por conta da tecnologia atual, os jogos estão ficando cada vez mais realistas. A sensação que você tem quando está no jogo está cada vez mais perto da vida real”, afirma Bolukbasi, em entrevista ao Estadão.

Embora não sejam tão apurados quanto os simuladores desenvolvidos para testes de equipes profissionais, os emuladores usados nas competições de e-sports têm muitas semelhanças com um carro de verdade. Várias delas estão no cockpit, que imita não só a posição do piloto, mas também algumas das sensações e vibrações que podem ser experimentadas. Além disso, pontos de freada e aceleração são bem próximos dos reflexos necessários quando os pilotos vão para o asfalto. 

Para construir um simulador, é necessário um escaneamento da pista que permite reproduzir o modelo exato no computador. Esse processo é feito com câmeras e sensores Lidar (presentes também no iPhone), que determinam profundidade e fazem mapeamento 3D do ambiente. Com isso, é possível capturar detalhes do traçado e do entorno do autódromo.

Depois de capturadas, as imagens passam por uma edição computadorizada que une os dados de escaneamento com dados coletados em atividades reais na pista. Essa etapa permite que o circuito virtual ganhe características mais precisas na hora de pilotar o simulador. Só então são adicionados controles motores no assento e no volante, reproduzindo algumas das respostas que o piloto pode encontrar na pista — mesmo sem replicar fatores como impacto e ação da força G sobre o piloto, os simuladores acabam com um nível alto de proximidade com a vida real.

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“Foi diferente estar em um carro de verdade, mas eu competi em pistas que eu já conhecia muito bem dos torneios online. A minha primeira sensação foi de pensar que os simuladores estão, de fato, próximos da vida real, porque eu nunca tinha andado naquelas pistas antes. E foi algo bom, porque, se não fosse minha carreira online, eu não teria como competir com pilotos que já eram experientes por terem passado por categorias juniores. Isso me mostrou o quão realista os jogos têm se tornado”, explica Bolukbasi.

Carreira

O caminho para os jogos online não foi uma escolha deliberada de Bolukbasi. A troca das pistas de kart, quando era criança, para o mundo virtual ocorreu quando a família do piloto descobriu os custos para arcar uma carreira no exterior. 

“Eu competi em alguns torneios de kart em nível nacional quando eu tinha uns 7 anos. Fiquei alguns anos nesses campeonatos, mas, no geral, é um esporte muito caro. Então, quando percebemos o quanto realmente ia custar para competir em categorias juniores, desistimos. Foi aí que comecei a participar de campeonatos de e-sports, porque não queria parar de correr”, explica Bolukbasi.

O sucesso, que começou com um Playstation 3 e controles do tipo joystick, levou o turco para competições oficiais de e-sports, como piloto de equipes renomadas como McLaren e Red Bull (na sua equipe B, a Toro Rosso).

Além de ser o primeiro piloto a competir na F2 vindo dos games, Bolukbasi também é o primeiro turco a chegar na categoria Foto: Twitter/Reprodução

Não demorou para que o piloto voltasse às pistas e ganhasse a chance na F2. A carreira, iniciada em 2013 no mundo virtual, abriu espaço para competições juniores de automobilismo no mundo real, como Euroformula, Fórmula Asiática e GT4 Europeia, onde, desde 2020, conquistou o top 10 no campeonato em todas as competições — incluindo um vice-campeonato.

“No final de 2019, tive uma oferta para competir em algumas corridas pela equipe turca BOM na GT4. Me disseram: 'ok, se você consegue dirigir assim nos simuladores vamos ver o que você é capaz de fazer em um carro de verdade'. Para mim foi uma oportunidade enorme, mas, obviamente, eu não tinha experiência em pistas reais, não tinha muita experiência nem em carros de rua, no trânsito. Mas correu tudo bem, me classifiquei em terceiro na primeira corrida e terminamos no pódio na segunda”, conta.

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Escola

A transição de Bolukbasi relativamente tranquila para as pistas reais indica como a tecnologia de simuladores está avançada, permitindo que seja usada para além da diversão. Segundo Fabio Delatore, professor de engenharia do Centro Universitário FEI e supervisor no Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1, a tecnologia aproximou os simuladores das sensações reais que um piloto tem na pista. 

“Existe um equipamento 3D que escaneia a pista para recolher informações sobre inclinação e curva. Um extenso volume de informações é tratado e, usando conceitos de cinemática, esses simuladores conseguem prever como o carro vai se comportar de acordo com o peso, e a distância entre eixos. Tudo isso é consolidado e torna possível fazer uma correlação dos carros reais e virtuais”, explica Delatore.

Uma das principais fornecedoras de software para esses equipamentos na Fórmula 1 é a holandesa Cruden, que ressalta a função dos games em ajudar os pilotos a interpretar circuitos na tela do simulador. Mas, segundo Dennis Marcus, gerente comercial da Cruden,quando o trabalho passa a ser dentro de uma equipe no ‘mundo real’, o caminho de aprendizado ganha mais uma camada. 

“O software não é diferente (entre games e simuladores profissionais): são apenas modelos de traçados mais precisos, melhor visual e menor latência (o atraso entre o disparo e a execução de um comando). Na F1/F2, os simuladores não são usados ​​para ajudar os pilotos a aprender uma pista porque eles já conhecem a maioria delas. O objetivo principal é permitir que engenheiros e pilotos trabalhem juntos na definição da configuração do carro em preparação para uma corrida”, afirma Marcus, em entrevista ao Estadão.

Um exemplo desse tipo de trabalho pode ser visto em 2021, em um dos campeonatos mais disputados da história da Fórmula 1. No duelo pelo título entre Max Verstappen, piloto da equipe Red Bull, com Lewis Hamilton, heptacampeão mundial da Mercedes, o simulador foi um dos recursos adotados pelo piloto inglês para melhorar a performance de pista contra o adversário da Red Bull. Antes da batalha, Hamilton não costumava ser adepto da simulação. 

Futuro

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O movimento de Bolukbasi para a Fórmula 2 foi pioneiro, mas não deverá ser o único no mundo do automobilismo. O próprio piloto acredita que as equipes ficarão mais atentas aos talentos das competições de e-sports.

Prestes a estrear na Fórmula 2, Bolukbasi testa assento da sua Charouz de 2022 Foto: Twitter/Reprodução

Essa também é a opinião de João Bruno Palermo, membro do projeto Fórmula FEI Elétrico, do qual Delatore é coordenador. Palermo enxerga que o avanço desse tipo de equipamento pode ajudar a construir carreiras, que exploram as corridas virtuais. De certa forma, seria uma maneira de ampliar o acesso a um esporte altamente elitizado. 

“Acredito que é possível ter novos pilotos saindo dos games. Ver equipes grandes da Fórmula 1 comprando equipes para competir em e-sports e testando esses pilotos em carros reais. Será porta de entrada para outras pessoas na categoria”, aponta Palermo.

Outro trunfo importante para quem domina as pistas virtuais é a capacidade de desenvolver trabalhos fora da pista. Com a importância do simulador aumentando nas equipes, é possível que esses pilotos tenham cada vez mais espaço para integrar equipes de desenvolvimento de tecnologia. 

Nas pistas reais, onde Bolukbasi vai dividir o box com o brasileiro Enzo Fittipaldi na equipe Charouz, o desafio vai ser uma novidade, mas o piloto não parece assustado. Em mais um ano de pé no acelerador, a oportunidade do turco é de fazer história e mostrar o avanço da tecnologia no universo do automobilismo.

“Eu acredito 100% que outros pilotos também podem fazer carreira em carros reais a partir dos e-sports. Eu posso ser o primeiro, mas eu tenho certeza que não vou ser o único. Quanto mais essas categorias se aproximarem da vida real e desenvolverem tecnologias de ponta, mais acessível vai ser para que outros pilotos também apareçam nesse caminho”.

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