Games abrem nova fronteira para criação de tratamentos médicos

Grandes estúdios e indústria farmacêutica usam jogos para engajar pacientes em tratamentos; depressão, Alzheimer, restrições motoras e visuais estão entre os problemas de saúde que podem ser tratados com ajuda de novos tipos de games

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Por Bruno Capelas
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Em um futuro não muito distante, quem for ao médico poderá sair do consultório ou do hospital com uma receita um bocado diferente. No lugar de uma medicação ou longas sessões de fisioterapia, o médico poderá recomendar um game como o melhor remédio para aquele paciente. Desenvolver soluções baseadas em jogos eletrônicos para o tratamento de doenças se tornou o foco de alguns estúdios de games, startups e de gigantes da indústria farmacêutica. Essas empresas apostam que os games podem auxiliar a ‘curar’ doentes.

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Atividades como jogos de memória, baralho e até mesmo o Wii – videogame da Nintendo cujo sistema capta os gestos que o jogador faz com um controle em formato de bastão – já foram utilizados em diferentes áreas da medicina, como fonoaudiologia, fisioterapia ou até mesmo no tratamento de disfunções cognitivas como o mal de Alzheimer ou o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). A diferença é que, se antes essas soluções partiam do poder de improvisação de alguns médicos, agora a indústria passa a enxergar o potencial desse setor com outros olhos.

Como se trata de um novo mercado, é difícil mensurar seu potencial econômico. “Temos visto investimentos muito fortes de empresas e institutos de pesquisa”, diz o professor Marcelo Vasconcellos, que coordena o núcleo de pesquisas sobre Jogos e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Atenção. É o caso, por exemplo, da startup norte-americana Akili Interactive, que se autodenomina “uma empresa médica que produz jogos” e conta com o apoio de grandes laboratórios como Pfizer e Shire. Fundada em 2012, a empresa desenvolve o game Project EVO, voltado para crianças que têm TDAH. “Essas crianças não conseguem priorizar o que é mais importante e focar em uma atividade. O que nosso jogo faz é mandar estímulos para o cérebro da criança para que ela consiga direcionar sua atenção. Ao fazer isso, ela ganha pontos”, explica Matthew Overnick, diretor criativo da empresa.

Veterano da indústria de games – no passado, ele foi diretor de arte de jogos como Star Wars: Battlefront –, Overnick acredita que os jogos podem ser uma boa saída para evitar a “medicalização” – nome dado ao uso indiscriminado de remédios em alguns tratamentos. “Muitos pais não querem encher seus filhos de remédios, de maneira que um jogo pode ser uma boa solução”, diz ele.

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No momento, a Akili está finalizando seu jogo e testando a eficácia do projeto em humanos antes de pedir aprovação à agência reguladora dos EUA, a Food and Drug Administration (FDA), para vendê-lo no país – a empresa quer que os planos de saúde reembolsem o pagamento do jogo. “Não podemos colocar nosso jogo em uma loja de aplicativos e vendê-lo livremente. Seria como dar remédio a alguém que não está doente”, explica Overnick a respeito do modelo de negócios da empresa.

Outra grande empresa a investir nos jogos de saúde é a Ubisoft, conhecida por games como Assassin’s Creed e Far Cry. Em parceria com uma universidade do Canadá, o estúdio da empresa em Montreal está trabalhando no jogo Dig Rush, que trata ambliopia, problema ocular que atinge de 1% a 3% das crianças de até seis anos de idade. A doença faz com que o cérebro não reconheça funções visuais como a percepção de movimento, profundidade e detalhes em um dos olhos.

Assim como Project EVO, Dig Rush só poderá ser jogado mediante prescrição médica. Ele também aguarda aprovação na FDA para poder chegar às mãos dos pacientes – a previsão de Mathieu Ferland, diretor da Ubisoft Montreal, é que o game esteja disponível em 2017. Para jogá-lo, será preciso usar um óculos 3D (com uma lente vermelha e outra azul).

“Todo o jogo é desenhado em preto e branco e alguns elementos importantes, como os personagens, estão em azul ou vermelho. Usamos esses elementos para treinar o olho do jogador que precisa ser curado, mudando o contraste dos elementos na tela”, explica Ferland. “Dessa maneira, o cérebro é treinado para mandar estímulos similares aos dois olhos, o que corrige o problema.” O tratamento com Dig Rush pode levar de quatro a seis semanas.

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Sopro. Há empresas brasileiras buscando um lugar nesse mercado: uma delas é a Fófuuu, startup de São Paulo que criou um aplicativo para auxiliar crianças em tratamentos fonoaudiológicos. Em desenvolvimento, o app conterá jogos simples que pedirão à criança para falar ou soprar no microfone do celular ou tablet.

“Muitas vezes, a criança não se dedica ao tratamento porque ele é chato ou porque o pai não tem tempo de acompanhar. Tentamos resolver esse problema”, explica Bruno Tachinardi, sócio-fundador da empresa.

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Inicialmente, a meta é lançar o aplicativo em 2017 apenas com exercícios voltados para crianças que têm lábio leporino. O próximo passo será adaptá-lo para outras áreas da fonoaudiologia. Ao contrário de outros games de saúde, Fófuuu poderá ser jogado por qualquer pessoa. “Atingiremos o sucesso quando uma criança que não faz nenhum tratamento quiser jogar”, diz Tachinardi.

Uma versão teste do Fófuuu será lançado nas próximas semanas. Atualmente, a empresa passa pelo programa de aceleração do StartupLab, em Belo Horizonte, e depende de um investimento de, no mínimo, R$ 250 mil para lançar seu projeto, que será vendido por meio de assinatura. “Um tratamento chega a durar em média dois anos. Queremos criar um sistema de cobrança mensal, como um Netflix, para bancar a renovação dos jogos”, explica o empreendedor.

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Riscos. Para Vasconcellos, da Fiocruz, os games de saúde aumentam o engajamento dos pacientes. “Quando o exercício é transformado em um jogo, você vence o tédio. A pontuação gera uma competitividade positiva para o paciente.” No entanto, o cientista faz uma ressalva importante. “Nenhum jogo cura”, diz Vasconcellos.

Gilson Schwartz, pesquisador da Universidade de São Paulo e coordenador da rede Games for Change, por sua vez, alerta para os riscos da utilização extrema dos games na medicina. “É importante estar atento quando a indústria oferece ‘um divertimento que cura’, porque isso pode ser uma ferramenta de dependência tão grande quanto um remédio”, diz. Para o especialista, é necessário que governo e academia criem uma regulamentação específica para o setor no futuro.

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