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'Não haveria games e computadores no Brasil sem o mercado cinza', diz autor de podcast

Série documental ‘Primeiro Contato’ recupera a história do mercado de jogos e PCs nos anos 1980 e 1990 no País

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Por Guilherme Guerra
Atualização:
O computador canadense Amiga, de 1985, foi popular entre os brasileiros, mas nunca foi produzido no País Foto: Wolfgang Rattay/Reuters

O mercado de jogos eletrônicos no Brasil enfrentou, desde 1980, problemas como hiperinflação, altos custos de importação e defasagem de produtos nacionais frente aos competidores estrangeiros. Muitas vezes, o consumidor por aqui tinha de dar um “jeitinho”, procurando por vias ilegais uma maneira de contornar os entraves. Comprar um computador ou game trazido do exterior, sem passar pela alfândega, foi uma das práticas mais populares – é o tal do mercado cinza.

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“Sem ele, não haveria mercado de games ou de computadores no Brasil”, afirma o jornalista Henrique Sampaio, autor do podcast documental Primeiro Contato, que remonta a história desse segmento no País entre as décadas de 1980 e 1990. A série estreou nos tocadores de áudio no dia 19 de julho, com expectativa de 12 episódios no total, trazendo à tona nomes como a distribuidora de software Brasoft e a fabricante de games Tectoy, há muito desaparecidos da realidade do jogador brasileiro.

Esses nomes surgiram quando o governo brasileiro tentava fomentar um mercado que, até então, era a maior novidade do mundo. A falta de continuidade de políticas públicas para o setor, cenário hiperinflacionário e abertura ao mercado externo “dizimaram” esses nomes na virada do milênio, conta Sampaio. “Temos um mercado aberto demais às empresas de fora, sem promover as locais. A indústria de games sofre muito”, explica.

Abaixo, leia trechos da entrevista.

O mercado de games mudou muito dos anos 1980 até hoje. Como foi essa trajetória?

Tem uma diferença muito grande de lá para cá. O mercado hoje é dominado por empresas estrangeiras dos Estados Unidos, da França e do Japão. Existem as locais, como Aquiris e WildLife, mas a maior parte do dinheiro movimentado por aqui vai para fora do País. Nos anos 1990, no mercado de PCs, existia uma demanda do público que colocava os computadores em casa e exigiam programas em português, com companhias intermediárias que adaptavam os produtos para nosso mercado, aprendendo alguma coisa do processo, como programação, fazendo com que essas pessoas aprendessem a desenvolver um jogo. A Brasoft, ao perceber que perdia espaço para as empresas de fora, tentou desenvolver os próprios jogos baseados nas propriedades da Globo, como o Big Brother Brasil. Foi uma maneira de essas empresas resistirem e se adaptarem ao momento turbulento. Mas elas são dizimadas do mercado na virada do milênio, que trouxe uma crise econômica. Isso molda o cenário que existe hoje, dominado pelas empresas de fora. Temos um mercado aberto demais, sem promover as empresas locais. A indústria de games sofre muito porque não há desenvolvimento nacional.

Qual é a herança dos anos 1990 que se manteve?

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Os primeiros jogos desenvolvidos no Brasil já tinham bastante consciência do que eles eram e dos espaços onde eles existiam. O próprio Aventuras na Selva, também conhecido como Amazônia, é um jogo com certo senso de humor na trama, porque tem uma consciência política e faz comentários sobre questões indígenas — tudo muito sutil, mas já tinha certa sensibilidade de identidade e nacionalidade, de reconhecer aquele produto como um jogo que tratava de questões brasileiras. Quando você pensa num jogo atualmente, você vê que ainda existe muita consciência política. São pessoas que sabem das condições do País, entendem o videogame como uma linguagem capaz de apresentar uma perspectiva, um problema. São pessoas que usam o videogame como mais do que algo que você joga para passar um tempo. Sempre tivemos isso, desde os anos 1980. Não vemos o jogo como escapismo, mas sim como algo que faz a ponte com a sociedade.

No podcast, você sempre cita o “jeitinho brasileiro” para contornar entraves, como pela hiperinflação e importação de jogos e máquinas. Qual foi a participação do “jeitinho” para o nascimento do mercado de games no Brasil?

Era até uma forma de sobrevivência nesse contexto tão complicado de tributos, dificuldades de acesso ao computador ou ao kit de desenvolvedor. No Brasil, houve o uso das bancas de jornais para distribuir software e jogos completos nas revistas. Isso foi uma maneira de superar esses problemas de distribuição no Brasil e era uma maneira de escapar dos tributos, já que as revistas eram isentas da taxação, ao contrário da venda no varejo. Era uma maneira de driblar as questões tributárias e pagar menos na distribuição. 

O Brasil também era muito afetado pela defasagem de tecnologia, já que importava PCs mais velhos para rodar jogos antigos, que não eram o lançamento mais recente. Isso era encarado como um problema na época?

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Nos anos 1980, existia uma noção menor de que estávamos defasados. Não tinha internet e, no máximo, tínhamos as revistas dedicadas a hardware. Conforme ganhamos acesso a essas máquinas, foi ficando mais claro que estávamos atrasados tecnologicamente. Durante muito tempo, o brasileiro não se importou em ficar com os jogos mais antigos. Mas, nos anos 2000, quando começamos a diminuir a distância tecnológica para os países desenvolvidos, começamos a nos importar mais. Mas é curioso, porque o jogo mais antigo chegava por um preço mais em conta. Isso acabava contribuindo para que existisse uma sobrevida para esses produtos mais velhos. Sempre convivemos com a defasagem, mas a gente encontrava o jeito de se divertir com o computador. 

Hoje lidamos menos com isso. O hardware naquele momento injetava coisas novas, como mais cores, mais canais de som. Atualmente, não temos mais essas questões porque é mais relativo à performance. E existe uma variedade gigante de jogos, que têm demandas diferentes de processamento. 

Atualmente, a política de games parece ser somente uma política tributária, reduzindo alíquotas sobre o setor para conter a alta do câmbio. Isso é suficiente?

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Acho que não. Existem uma série de fatores que contribuem para que o preço dos jogos e do hardware sejam tão altos. Há o câmbio alto, o Imposto de Importação, o ICMS. Nada disso ajuda. O presidente (Jair Bolsonaro) tenta agradar uma base que o ajudou a elegê-lo, mas acredito que não tem muito efeito econômico porque os jogos estão ficando mais caros. Precisa de um plano mais cuidadoso, mais elaborado para pensar o mercado e a indústria de games, e não apenas abaixar impostos e achar que isso é suficiente. Mas nunca houve esse plano. 

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