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Jornalista, escritor e palestrante. Escreve às quintas

Opinião|A história mais importante do digital

Se algo une direita e esquerda no mundo atual é o desejo de impor o peso do Estado ao Vale.

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O 'quarteirão central' da UniversidadeStanford, um dos principais pontos de referência de Palo Alto Foto: Max Whittaker/NYT

A primeira vez em que pus os pés em Palo Alto foi no segundo semestre de 1989. Faz trinta anos. Já era o centro do Vale do Silício, aquela cidadezinha, mas quem viveu lá não reconheceria a Palo Alto de hoje. A história da transformação do Vale nestas últimas décadas tem muitas maneiras de ser contada. É demográfica, é imobiliária, tecnológica. E ideológica. Cada uma destas transformações pelas quais aquela cidade e suas vizinhas passaram tem impacto no mundo hoje. Econômico e político. Compreender este processo é o início de compreender a transformação.

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A Palo Alto em que vivi era uma cidade americana de classe média. Havia casa de ricos, gente que havia feito muito dinheiro no ramo dos microcomputadores. E havia casas de pobres. As ruazinhas americanas, daqueles gramados em frente às casas, variavam, umas bem cuidadas, outras nem tanto. Ainda existia a memória dos anos 1960 e 70, quando toda a região era uma grande plantação de laranjas. E boa parte da gente por ali era formada por ex-hippies e seus filhos, a turma que migrou para São Francisco em busca do Verão do Amor, em finais dos anos 1960. Entre meus colegas secundaristas havia californianos louros, assim como muitos negros e latinos, numa proporção bem próxima do um terço cada. Os jogadores de futebol americano eram as estrelas, cheerleaders faziam nós adolescentes virarmos a cabeça, uns geeks passavam o dia programando. Uma cidade americana de filme — como todas as outras.

O espírito hippie foi fundamental na invenção do Vale. Enquanto cientistas da computação em todo o mundo tentavam criar inteligências artificiais, naquele canto da Califórnia tentou-se algo diferente com computadores: fazer com que o digital ampliasse as possibilidades de cada indivíduo. Conseguiram. Ampliar as possibilidades é a essência da ideologia hippie, está no consumo de LSD, na busca da natureza, experimentação sexual. Conhecer mais, ir mais longe, ganhar novas percepções.

Nolan Bushnell, fundador da Atari, primeiro empregador de Steve Jobs, foi o arquetípico executivo do Vale. Fazia reuniões num grande ofurô com todos nus, maconha era aceita nos corredores e considerada parte do processo criativo.

Tudo isso está vivo. Em cada Google, em cada Facebook, em cada pequena startup onde espaços de diversão com cores e games surgem, ali estão os resquícios da alma hippie inicial. Mas há um quê diferente. Na Atari de Bushnell, trabalhava-se e divertia-se em iguais proporções. Hoje, muitas destas empresas incentivam o trabalho por longas e longas horas.

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Liberdade é uma palavra com muitos sentidos. Aquele espírito do norte da Califórnia também atraiu libertários — os liberais extremistas, para quem o Estado mínimo ideal é o inexistente. Conforme o volume de dinheiro produzido na região foi aumentando, e porque há mais homens do que mulheres em engenharia, a cultura começou a se masculinizar. O amor livre virou assédio. A liberdade se tornou um desejo de criar um mundo no qual o digital, controlado por empresas gigantes, substituiria o Estado.

Também a demografia mudou. Não há mais pobres no high school onde estudei. Não há mais negros e latinos, comuns no resto da Califórnia. Foram substituídos por chineses e indianos. Todos com as melhores cabeças matemáticas. Quase todos filhos de gente que consegue pagar para viver no metro quadrado que se tornou o mais caro dos EUA, talvez do mundo.

Muito dinheiro, baixa diversidade econômica, pouco contato com o mundo real onde a vida às vezes é dura. Se uma coisa une direita e esquerda no mundo atual é o desejo de impor o peso do Estado ao Vale. Este embate será a história mais importante da tecnologia na década que entra.

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