A noção rígida do público e privado fazia parte de uma sociedade que se rompeu""

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Por Filipe Serrano
Atualização:

Luiza Lobo é autora do livro Segredos Públicos – Blogs de mulheres no Brasil (Editora Rocco), em que analisa, entre outros temas, a intimidade das mulheres revelada nos blogs. Formada em Filosofia e Letras, Luiza leciona literatura comparada na pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela conversou com o Link sobre os limites tênues entre público e privado na internet. Leia abaixo a entrevista completa.

 

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Na internet, a noção de público e privado que tínhamos antes não vale mais. Por que isso acontece? Ou esse tipo de comportamento é comum? Acho que a noção rígida do público e privado fazia parte de uma sociedade que se rompeu. No modernismo, o que valia era aquela sociedade alemã, européia e eurocêntrica que o Adorno e o Horkheimer estudam, em que você tem papéis muito rígidos daquilo que é conveniente. Aquela cultura de salão, de que a elite tem um determinado refinamento.

Isso tudo se rompe principalmente por causa da mídia. Pela televisão ou revistas, e mais ainda no computador, a intimidade das pessoas entra na casa de qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar.

Nós aí caímos numa certa cultura da oralidade em que estas barreiras não existem muito. Nas culturas orais, as pessoas discutem muito a vida alheia; não têm essa noção de classe, de elite, de convenção, nada disso.

Há um certo retorno à uma sociedade anterior ao direito autoral, de Cervantes. Naquela época em que você podia copiar qualquer coisa porque a questão da individualidade, da propriedade privada, foi surgindo no mercantilismo e no capitalismo. Mas é inviável na internet. Você pode até fazer um processo, reclamar, mas é uma coisa tão complicada que a maioria das pessoas desiste.

No Brasil isso é mais expressivo por ter ser uma cultura mais de oralidade? Não, acho que a gente teve, sim, no século 18 e 19. Nós estruturamos uma sociedade eurocêntrica. José de Alencar e Machados de Assis mostram que havia um comportamento em que não se falava de certas coisas.

Mas como nós somos basicamente formados por povos tribais – indígenas, africanos, de várias origens – nós saímos também mais facilmente desses padrões rígidos. Nós recaímos na oralidade, naquela, digamos, falta de conveção, que é típica do brasileiro, que dá um tapinha no ombro. Isso é muito normal.

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Nem nos EUA tem muita convenção por causa da influência da mídia, que é basicamente oral. Nós invadimos tranquilamente a intimidade dos outros. As revistas de fofocas que estão no limite do blog.

Como a oralidade afeta a cultura escrita? Acho que o blog tem uma função positiva para as pessoas voltarem a escrever. A fase da televisão foi considerada pós-alfabetização. Então você deixava de escrever. Ouvia o rádio e a televisão, e deixava de escrever. O blog é um retorno à escrita, por ter uma preocupação mínima com coerência. Tem de organizar os acontecimentos para poder relatar. Isso é positivo.

Então eu fiz uma comparação, o diário era para a mulher uma passagem para uma classe acima. A mocinha fazia o diário para mostrar que ela tinha um refinamento de linguagem. Quando ela casava, ela queimava o diário. Ela não guardava aquilo.

Hoje o blog está aberto à qualquer um. É muito mais democrático. Isso exercita seu amadurecimento de vida. É muito positivo. Mas é tudo muito teatro. As pessoas não usam identidades próprias, usam nomes falsos.

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E também porque a identidade no pós-moderno acabou. Não existe mais a imagem do pai, do tio, da família, com aquela força toda. Hoje a identidade é flutuante. Ela é ocasional. Isso também é uma certa ruptura das convenções. Então as pessoas, de certa maneira, sempre adotam alter egos na internet.

Agora, elas perdem a noção de estão escrevendo sobre assuntos pessoais, mesmo que não usem identidades falsas? E de que forma isso influencia na sociedade como um todo, além da internet? Quando eu comecei a pesquisa, fiz algumas entrevistas. E a maioria das pessoas adotavam uma nova identidade para não prejudicar o trabalho. Existem muitos blogs de mulheres lésbicas e elas não gostariam que houvesse uma devassa nas suas vidas privadas. Então adotavam um alter-ego teatral.

Acho que a privacidade permanece, mas o que flutua é a identidade. A pessoa vai adotando várias máscaras, o que é próprio mesmo do mundo moderno. Na vida real, ela tem o prazer de sentir que ela é mais do que uma pessoa só. Ao contrário da época antes do pós-moderno, em que a busca por uma identidade fixa era intensa: pela moça de família, a mulher da vida, a mulher do teatro, da raça, do gênero. E no pós-moderno, você está em todas as partes ao mesmo tempo.

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Essa quebra de convenção leva as pessoas a escreverem mais sobre a vida privada na internet? A ideia no início era uma formação de uma personalidade respeitável, de uma moça que pudesse se casar, que tinha o seu padre que orientava na igreja católica. E é enriquecimento porque não há mais a diferença entre público-privado, homem-mulher.. Existe o feminimo, o masculino, uma categoria público-privado que transita.

Então quanto mais as pessoas puderem usar esses papéis, mais ricas elas serão. E o blog é um instrumento de enriquecimento das identidades de cada um.

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O uso de pseudônimos significa que ainda há noção de que a internet também é um espaço público? Acho que os homens controlam mais a realidade na internet. São mais calculistas no que escrevem. E as mulheres escrevem de maneira mais emocional. É claro que existem pessoas que infrigem esses limites em grande quantidades. No geral, acho que ambos os lados aprendem um com o outro.

O que você acha que vai acontecer com os limites entre público e privado daqui para frente? Acho que o privado totalmente nunca vai terminar, mas esses limites são menso claros. Já sabemos tudo que as pessoas fazem. Antigamente tinha aquela ideia de que a classe alta, a elite, tinha um comportamento maravilhoso, que eram irrepreensíveis.

Não falamos, mas nas redes sociais é possível acompanhar o que as pessoas estão fazendo ou falando. Participar de uma tribo urbana é muito importante porque nós vivemos numa sociedade de anomia. Você não tem um nome. Somos completamente anônimos. Esse desejo, principalmente do jovem, de entrar num grupo é fundamental. Porque ele já não tem a família como referencial e ele precisa entrar na sociedade. E isso é uma forma positiva de aprendizado. As pessoas estão trocando experiências.

Acho que é um mundo novo. Um mundo da nova história, que você não fica só os grandes fatos, mas você fica também com a história do cotidiano.

Agora, essas informações não podem se voltar contra a pessoa que a publicou? Acho que não. Começo o livro contando como tudo passa, tudo flui na internet. Como aquela lei de Gérson que se virou contra ele, e ninguém mais sabe quem é Gérson hoje. As informações podem não agradar em determinado momento. Mas nós vivemos numa sociedade pós-moderna que não tem um registro na pedra. Que as coisas vão evoluindo, todo mundo sabe porque muda tudo muito rápido.

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Um amigo meu, o Luciano Zajdsznajder, que até já faleceu, escreveu o livro A travessia do pós-moderno. Uma vez foi fazer uma palestra para os meus alunos de pós e ele disse: “A melhor coisa do pós-moderno é a gente saber que não tem mais responsabilidade sobre o mundo”.

Aquela coisa do Kant, que tinha responsabilidade do “dever ser”, acabou. Porque tudo passa, tudo flui, tudo é anônico, você não é responsável sozinho por nada, a sociedade é muito complexa. Então mesmo que você esteja errado, você pode dizer “ah, eu pensava assim, mas não penso mais”. Isso seria inviável há 50 anos. Iam te chamar de irresponsável. Se Einstein chegasse hoje, fizesse uma teoria errada e dali dois dias ele se retratasse, todo mundo ia achar normal. Porque está tudo mudando tão rápido que é natural que a pessoa se corrija e volte atrás.

Da mesma forma, não existe um registro total do que você fala. Ainda há um respeito muito grande pelo livro porque ainda é considerado como um registro definitivo das informações. Tudo que é forma impressa em papel, ainda tem uma certa aura. Agora na internet, na mídia oral, acho que existe essa sensação de irresponsabilidade. É algo bom pra vida. Não sei se é bom para o saber, porque a gente vê tanta coisa errada na internet, que tem que tomar muito cuidado onde você está pegando as informações.

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