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Jornalista, escritor e palestrante. Escreve às quintas

Opinião|A política do ódio

A verdade é que ter voz ativa no debate público no mundo de hoje é estar exposto a cancelamentos corriqueiros

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Se fosse na vida real, o nome seria linchamento, mas como é nas redes sociais, chamamos cancelamento Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Quem acha que o ataque contra Thammy Gretchen, por conta da publicidade de Dia dos Pais da Natura, e aquele feito contra a professora Lilia Schwarcz, por sua leitura do filme de Beyoncé, são coisas distintas está se enganando. Claro, do ponto de vista ideológico, vêm de extremos opostos. O primeiro vem de uma direita transfóbica e, o segundo, da militância negra habitualmente à esquerda. Mas a ferramenta é exatamente a mesma: a massa contra uma pessoa. Se fosse na vida real, o nome seria linchamento. Como é nas redes sociais, chamamos cancelamento.

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Quando o cancelamento vem da esquerda, há quem argumente que é uma reação social normal contra a opressão. Que historicamente quem é oprimido, uma hora, se ergue e responde. De fato. Desde John Locke consideramos que é um direito reagir à opressão. Só há um detalhe que não é irrelevante. A Revolução Francesa foi contra a Coroa. A Russa, contra o Império. Anarquistas, grevistas, os estudantes da França em 1968 ou os da China em 1989, todos se ergueram contra governos, contra indústrias — não contra indivíduos.

Se fosse na vida real e uma multidão avançasse contra uma pessoa, chamaríamos de covardia. Quando a direita faz — foi o caso de Thammy — é a lei do mais forte contra o mais fraco. Quando a esquerda faz, alguns chamam de justiça. Os exemplos desta semana são exemplos, toda semana há exemplos novos. Porque o que ocorre é sempre o mesmo: um bate, depois o segundo, aí vem a avalanche. Às vezes é provocado, noutras espontâneo.

Quem está tomando a surra aprende lá pela segunda ou terceira vez o truque para lidar quando se é cancelado. É sair da rede. Em geral, uma semana basta. Aí reaparece como quem não quer nada e todo mundo já esqueceu. Recomenda-se não ler as mensagens mais antigas.

Há truque também quando ser cancelado faz parte da rotina. Cada rede tem seus filtros. Um dos jeitos é sair bloqueando pessoas a torto e direito. Outro é emudecer — a pessoa não é bloqueada, pode ler as coisas que você escreve. Mas você não precisa ler os desaforos que vêm como resposta. Em grande parte, funciona.

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Há um último truque para os frequentemente cancelados: psiquiatras. A verdade é que ter voz ativa no debate público no mundo de hoje é estar exposto a cancelamentos corriqueiros. Não conheço quem tenha se acostumado. Mas conheço quatro que entraram no tarja preta para aguentar o tranco.

Outro argumento em defesa dos cancelamentos, este usado por esquerda e direita, é de que é o jeito para quem não tem espaço se fazer ouvir. Quem acredita nisso se ilude. Não são ouvidos. Quando se abre a rede e a timeline é um girar e girar o mouse e só vem pancada, nada é lido. É muito possível que existam observações interessantes ali no meio, argumentos que talvez até pudessem levar a mudanças. São perdidos na avalanche de ódio.

O resultado, na verdade, é outro. É calar o debate com violência. Faz parte da minha função, como jornalista, conversar diariamente com cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, historiadores. Está começando a acontecer: ouço uma observação interessante, peço para gravar em vídeo. “Não, isso não posso falar.”

Professores doutores intimidados. Não é só pela direita, não. É pela esquerda também. Não estão sozinhos. O cancelamento, lentamente, vai esganando o debate público. Vai o restringindo a guetos. E aí olhamos para os palácios de governo aqui e alhures e, com cada vez mais frequência, percebemos dentro deles autoritários que chegam ao poder galgando a raiva gerada na internet.

Não são fenômenos separados. São o mesmo fenômeno. E a cada pá nova de ódio vai enchendo esta cova. Lá dentro está o debate que mantemos em público sobre nossos valores e a sociedade. É a democracia.

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