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Jornalista, escritor e palestrante. Escreve às quintas

Opinião|A realidade paralela

Estamos, lentamente, entrando num terreno em que a fronteira entre realidade e ficção está desaparecendo

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Estão importando, para o Brasil, o QAnon Foto: Stephanie Keith/Reuters

No último dia 1º, terça-feira agora, o presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, foi a um estande de tiro — postou, animado, as fotos e vídeos no Twitter, com um rifle automático e uma pistola. Uma típica cena bolsonarista, claro, não fossem as legendas. “44 Magnum”, escreveu o antigo líder da tropa de choque de Fernando Collor, dois impeachments atrás. “Uma nova espécie de vacina para pedófilo.” Soltou assim no ar como quem não quer nada. Pedófilos vêm aparecendo aqui e ali, com cada vez mais frequência, no discurso das contas bolsonaristas de Twitter. Estão importando, para o Brasil, o QAnon.

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Trata-se da mais estranha teoria conspiratória a circular na internet. Uma pesquisa publicada esta semana, nos Estados Unidos, e realizada pelo site DailyKos em conjunto com a empresa de estatística Civiqs Poll, identificou que um em cada três eleitores do Partido Republicano acreditam que esta história bizarra é em grande parte verdadeira. Outros 23%, quase um quarto, acreditam que é parcialmente verdadeira. Apenas 13% dos republicanos a consideram completamente falsa.

Estamos, lentamente, entrando num terreno em que a fronteira entre realidade e ficção está desaparecendo. Num ambiente assim, a democracia escorre por nossos dedos.

Em matéria de teoria conspiratória, o QAnon vai muito além do razoável, do crível. De acordo com esta tese, o mundo é em verdade controlado por uma seita que cultua o diabo, adota a pedofilia como atividade corriqueira, e por vezes recorre à antropofagia. Estas pessoas literalmente comem bebês. São todos socialistas e também todos muito ricos — são eles que controlam o dinheiro circulante no mundo. Seus líderes não são desconhecidos — incluem gente como Hillary Clinton e Barack Obama. E Donald Trump, muito mais do que presidente dos Estados Unidos, secretamente tem missão bem mais grave. A de desmantelar esta rede criminosa.

Trump está sempre a um passo de fazê-lo mas nunca o faz.

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Foi-se o tempo em que os adeptos de teses assim acreditavam que Fidel Castro estava por trás do assassinato de John Kennedy. Agora, a esquerda é representada pelos bilionários do mundo e pratica os mais horrorosos crimes que se possa imaginar.

E mais e mais bolsonaristas, em grande parte anônimos, vêm falando do risco de pedófilos pelo Brasil. Nos grupos de WhatsApp, as histórias já circulam com riqueza de detalhes. Está apenas começando a aflorar nas redes sociais públicas. Começa, claro, pelo Twitter. A mais selvagem dentre elas. Dia desses, alguém que se identificava com uma arroba de nome feminino seguido por uma série de algarismos, conta criada há poucos meses, já costurava uma tese de que as vacinas da Covid-19 estavam sendo criadas por pedófilos. Claro. Arroba com muitos algarismos, criada recentemente, é pura receita de conta falsa usada por robô ou gente paga para desinformar.

O objetivo é claro: criar uma realidade alternativa na qual eleitores possam viver, onde de alguma forma construam uma visão de mundo alienante e que os distraia da realidade. 

De uns meses para cá, Jair Bolsonaro domou o próprio temperamento em grande parte, se aliou ao Centrão, trabalha dedicado no desmantelamento da Lava Jato, e tem nas mãos a mais grave crise econômica desde o fim da Ditadura. A esquerda está anestesiada, liberais ou se horrorizam ou fingem acreditar em Paulo Guedes, enquanto um cenário de pesadelo se avizinha. Os militares fingem estar num governo normal.

Quando perdemos o contato com a realidade, o voto deixa de funcionar como instrumento de ação civil. As redes sociais pouco fazem. A oposição tampouco.

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O que estamos vivendo é novo. E muito perigoso.

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