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A sina da IANA

A resposta à NTIA poderia parecer óbvia: repassar a supervisão à própria ICANN

Por Demi Getschko
Atualização:

“Ai é luta, patuléia!”, título de um delicioso artigo de Vanessa Bárbara publicado em uma edição da Piauí de 2006, é um palíndromo – frase que pode ser lida, indiferentemente, da esquerda para a direita e vice-versa – de Paulo Werneck. Ele serve bem para ilustrar a tensão, pendular, na 54ª reunião da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN, na sigla em inglês) recém-encerrada em Dublin, na Irlanda. A cidade é reduto de escritores como James Joyce – talvez o único que tem no mundo um dia de comemoração. O Bloomsday, comemorado em 16 de junho, é o dia dedicado ao personagem central de Ulisses. É dia de lotar os pubs e encher a cara com cerveja preta, enquanto se recita a rebuscada prosa de Joyce.

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A cabeça do palíndromo: em 1998, um órgão do governo norte-americano, a National Telecommunications and Information Administration (NTIA) divulgava um green paper intitulado Uma Proposta para Melhorar a Gestão Técnica de Nomes e Números da Internet. Ela chamou candidatos a assumir a manutenção da raiz de nomes da internet, função até então exercida pela Internet Assigned Numbers Authority (IANA). Entre outras atividades menos críticas, a IANA cuidava desta lista de “sobrenomes” que habitam o nível mais alto da rede. É o caso do “.org”, “.com”, “.br” e outros. A IANA era formada por uma pequena equipe de uns dois técnicos, sob orientação do sábio cientista da computação Jon Postel.

Em setembro de 1998, a NTIA anunciou a proposta vencedora: uma organização recém-constituída na Califórnia, a ICANN, que tinha Jon Postel entre seus fundadores, assumiria as funções da IANA. Postel seria o chefe técnico da mesma atividade que já exercia há anos, com senso e sabedoria.

Duas semanas depois, acontece o imprevisto: em outubro de 1998, quando a ICANN já absorvia as funções da IANA, Postel faleceu. Vint Cerf, pioneiro da internet e colega de Postel, escreveu a requisição para comentários 2468, uma tocante apologia ao amigo. Com mais dúvidas, talvez, sobre a gestão da nova ICANN, a NTIA assinou, no começo de 2000, um contrato que estipulava que qualquer alteração na raíz de nomes (a função da IANA) seria avalizada pela NTIA. Ou seja, a NTIA, dos EUA, “supervisionaria” essas modificações. O contrato ainda sugeria que, após consolidação da ICANN, por volta de 2003, a NTIA poderia abrir mão dessa “tutela”.

Foi só em 2014, porém, que ela mostrou interesse em se afastar da função, “desde que a comunidade multissetorial defina como assumi-la”. Pesou nessa decisão, a pressão exercida pela comunidade e o processo que culminou, em abril de 2014, no encontro NETmundial, realizado no Brasil. A resposta à oferta da NTIA poderia parecer óbvia: repassar a supervisão à própria ICANN que, afinal, foi criada para isso em 1998. Mas, na internet, nada é tão simples assim.

A cauda do palíndromo: o debate em Dublin, polarizado por interesses comerciais e políticos exacerbados por 15 anos, continuou quente, num cenário onde “inimigos do meu inimigo” podem ser usados como “aliados úteis” quando há tanto em jogo. As tensões acumuladas enquanto a NTIA exerceu a supervisão afloraram. Que destino dar à IANA? 1998 volta à cena em pleno 2015 e cometo, também eu, um palíndromo algo manco: “Agirá para mudar IANA? Ha! Na ira duma rapariga!”

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