Algumas coisas boas aconteceram em 2017 no mundo da tecnologia

Apesar de o ano ter sido repleto de escândalos, algumas empresas e pessoas ligadas à tecnologia fizeram ações para beneficiar a sociedade

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Por Kevin Roose
Atualização:
Susan Fowler, que mexeu com as estruturas do Vale do Silício após denunciar os assédios sexuais que sofreu enquanto trabalhava como engenheira no Uber. Foto: Damien Maloney/The New York Times

Para muitos no Vale do Silício, 2017 pareceu um ano contínuos escândalos e pecados. Houve o declínio do Uber, que se afundou em uma sucessão de erros, incluindo relatos de assédio sexual desenfreado e má conduta de executivos. Houve também problemas no Facebook, que se tornou um para-raios por não conseguir tornar sua plataforma livre de propagandistas russos e extremistas de todo mundo. O Twitter e o YouTube também passaram boa parte do ano tentando limpar suas plataformas de neonazistas, exploradores de crianças e outros tipos indesejáveis.

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Mas nem tudo foi ruim no mundo da tecnologia este ano. Como muitas das maiores empresas do Vale do Silício estavam causando estragos, inúmeras pessoas e organizações usaram a tecnologia para avançar em causas importantes e resolver problemas em larga escala.

Esses projetos nem sempre chegam até as manchetes, mas eles mostram o que é possível fazer quando os criadores de tecnologia usam seus poderes para o bem. Por isso, eu estou apresentando o primeiro “Prêmio de Tecnologias Positivas”, para enaltecer uma série de iniciativas que produziram benefícios reais para a sociedade este ano.

Vamos ter mais destes em 2018, e menos gigantes se comportando mal.

Para Aira e eSight, por usarem “vestíveis” para ajudarem pessoas com deficiência visual a enxergarem

Cerca de 10 milhões de norte-americanos são cegos ou possuem alguma deficiência visual, e até recentemente, as companhias de tecnologia não tinham muito que oferecer a eles. Mas isso está mudando, graças a startups como a eSight e a Aira, duas empresas que estão se aproveitando dos recentes avanços dos dispositivos mobile e imaginando tecnologias para ajudar deficientes visuais a navegarem pelo mundo.

Aira, uma startup de San Diego, oferece “intérpretes visuais” através de um serviço on-demand de assinaturas. Os usuários do serviço usam óculos com câmeras e conexão sem fio para compartilhar as imagens do seu entorno com pessoas que, em tempo real, descrevem o ambiente e os guiam durante tarefas complexas. A companhia levantou US$ 12 milhões numa rodada de investimentos no começo do ano e recentemente conseguiu uma parceria com a Lyft (principal concorrente do Uber nos EUA) para melhorar a acessibilidade do seu serviço de atendimento.

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Óculos da eSight ajuda pessoas com deficiência visual a enxergarem melhor detalhes e imagens à distância. Foto: eSight

ESight, uma empresa de Toronto, está desenvolvendo uma tecnologia para ajudar pessoas que prejudicaram seriamente a visão, mas não a perderem totalmente. Este ano, a empresa lançou o eSight 3, a última versão do seu headset, que usa câmeras digitais e algoritmos de processamento de imagem — similares aos presentes em alguns sistemas de realidade virtual — para capturar e realçar o que os usuários veem. A imagem melhorada aparece em duas telas próximas aos olhos dos usuários, o que facilita para eles poderem ver detalhes pequenos ou distantes.

Essas tecnologias não permitem ainda que pessoas cegas dirijam ou façam outras atividades complexas, mas elas facilitam bastante o cotidiano e, para muitos deficientes visuais, elas foram uma benção.

Para a Human Utility, por manter o fornecimento de água

Três anos atrás, Tiffani Ashley Bell, uma programadora e membro da Code for America, soube que vários residentes de baixa renda de Detroit estavam tendo a água cortada por causa de contas não pagas. Por isso, ela e uma outra trabalhadora da área de tecnologia, Kristy Tillman, montaram o Detroit Water Project, uma plataforma online que conecta doadores voluntários com moradores de Detroit com contas de água para pagar.  

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A organização sem fins lucrativos, agora conhecida como Human Utility, entrou para o programa de aceleração Y Combinator e expandiu suas operações para Baltimore. Em 2017, os doadores pagaram mais de US$ 120 mil em contas de água para mais de 300 famílias. É um jeito simples, mas efetivo, de garantir que as pessoas tenham acesso a uma necessidade básica.

Para Bail Bloc e a Pineapple Fund, por usarem moedas digitais para o bem

É difícil argumentar que o boom das bitcoins no final de 2017, que dominou as conversas sobre tecnologia e gerou dinheiro para um punhado de investidores iniciais e especuladores, foi benéfico em larga escala para a sociedade. Mas dois projetos se destacaram por tentarem transformar a loucura por moedas digitais em uma força positiva.

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Bail Bloc, um projeto criado pela revista online The New Inquiry, é um aplicativo que usa o poder de processamento não usado pelo seu computador para produzir uma criptomoeda chamada Monero, similar ao Bitcoin. As moedas Monero geradas pelo software são convertidos em dólares e doadas para a Bronx Freedom Fund, uma organização que ajuda a pagar a fiança de moradores de Nova York que foram acusados de crimes menores, para que eles aguardar o julgamento fora da cadeia. No primeiro mês, o aplicativo criou e doou mais de US$ 3 mil em Monero.

Em uma escala maior, a Pineapple Fund criou uma forma mais misteriosa de filantropia usando moedas digitais. A organização foi fundada em dezembro por um doador anônimo que se chama de “Pine” e afirma ser uma das 250 pessoas com mais Bitcoins no mundo. Seu projeto pretende doar US$ 86 milhões em Bitcoin e, até agora, já doou cerca de US$ 20 milhões em moeda digital para 13 organizações, entre elas o Water Project, que oferece água limpa para pessoas da África Sub-saariana, e para a Electronic Frontier Foundation, uma organização defensora dos direitos digitais. (Essas doações podem ser verificadas graças ao sistema digital da Bitcoin, que registra todas as transações em um banco de dados público). Quem quer que Pine seja, ele ou ela parece ter encontrado uma maneira de converter Bitcoins em algo realmente útil.  

Para Pymetrics, por usar inteligência artificial para combater contratações enviesadas

A inteligência artificial obteve muito destaque em 2017, mas pouca atenção foi dada ao viés algorítmico - a tendência dos algoritmos para refletir os preconceitos dos programadores que os criaram.

Pymetrics, uma startup de Nova York, é uma das empresas que está usando algoritmos para tentar neutralizar o viés em vez de perpetuá-lo. A empresa faz softwares que ajudam as companhias a avaliarem os candidatos substituindo métodos tradicionais — como recrutação em grupo e currículos — por uma série de jogos baseados em neurociência, pensados para não serem discriminatórios.  

O resultado desses jogos é analisado com algoritmos que comparam as habilidades dos candidatos com as dos empregados atuais da empresa. O resultado do algoritmo é então analisado e ajustado para garantir que nenhuma vantagem foi dada aos candidatos com base em gênero, raça ou experiência escolar. Essa é uma maneira de tornar o processo de contratação mais justo e de nivelar os candidatos educados de maneira não tradicional em pé de igualdade com o restante.

Grandes corporações, como Unilever e Accenture já estão usando o Pymetrics para diversificar seu pool de talentos. Este ano, a companhia levantou US$ 8 milhões para se expandir para outros mercados.

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Para Visabot e Boundless, por ajudarem imigrantes a navegarem pelo labirinto legal

Com o controverso banimento de turistas e as questões sobre o futuro da imigração em xeque sob o governo do Presidente Donald Trump, 2017 fez a vida de muitos imigrantes e suas famílias mais difícil. Por sorte, muitas startups estão tentando ajudar.

Visabot, uma empresa de São Francisco, criou uma ferramenta autônoma para guiar imigrantes durante o processo de pedir extensão ou transferência do visto, green card e outros processos comuns de imigração. A ferramenta, um chatbot que funciona no Facebook Messenger, ajuda imigrantes a coletarem documentos e sugere melhorias nos pedidos. A companhia diz que mais de 100 mil pessoas usaram seus serviços, e recentemente eles lançaram versões em chinês, hindi e espanhol da ferramenta.

Boundless é uma startup de Seattle que simplificou o processo de solicitação de green cards por causa de casamento, o que costuma ser um processo frustrante para imigrantes e seus esposos. Em vez de preencher formulários complexos, os usuários são guiados passo a passo por uma série de questões, e suas respostas são revisadas por um advogado de imigração antes de serem enviadas. O serviço custa cerca de US$ 500 por pedido, o que é bem menos do que as taxas comumente cobrada por advogados.

Para Susan Fowler, por ter falado

A tecnologia que Susan Fowler usou para gerar efeitos positivos este ano — uma publicação de 2,9 mil palavras em seu blog pessoal em fevereiro documentando o assédio sexual que ela viveu como engenheira do Uber — está longe de ser de ponta.

No entanto, ela foi suficiente para chacoalhar o Vale do Silício, onde o comportamento inadequado de homens ricos e poderosos tem sido ignorado por décadas. O post de Fowler provocou uma indignação coletiva contra o Uber e desencadeou uma série de eventos que eventualmente levaram o executivo-chefe da empresa, Travis Kalanick, a sair.

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O Uber agora está meio que se estabilizando sob nova liderança. Mas as palavras de Fowler continuarão a ecoar, e ela se tornou uma das primeiras e mais importantes vozes do movimento #MeToo, um tsunami de reconhecimento cultural que forçou indústrias inteiras, incluindo o Vale do Silício, a lidar com seus legados de discriminação e assédio contra as mulheres.

Fowler, que está transformando suas experiências em um livro e um filme, não poderia ter imaginado o que ela estava iniciando quando sentou e escreveu aquelas 2,9 mil palavras, mas com uma única publicação, ela forçou uma indústria inteira a se olhar no espelho.

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