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Opinião|Atendendo a desejos...

Projetos sem extenso debate podem levar a leis que se comportam como teia de aranha

Atualização:
O perigo é a emenda sair pior que o soneto. Oscar Wilde, numa famosa e sábia tirada, nos preveniu: “quando os deuses querem punir alguém, eles atendem os seus pedidos”. Foto: Wikimedia Commons

Quem não gostaria de sanear a internet, ambiente em que nos movimentamos e vivemos hoje? Remover de lá o que seja maliciosamente enganador, estupidamente virulento ou viciosamente racista e excludente? 

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Todos anseiam por um ar leve e puro. Que apenas informações fundamentadas e edificantes cheguem até nós, e que possamos confiar integralmente no próximo. Essa utopia, entretanto, além de não ter guarida no que conhecemos por “gênero humano”, estará sempre longe, no horizonte, como algo a ser incansavelmente buscado, porém inatingível. O perigo é escolhermos caminhos escorregadios e falhos para avançar mesmo um pouco na direção da ansiada meta. O perigo é a emenda sair pior que o soneto. Oscar Wilde, numa famosa e sábia tirada, nos preveniu: “quando os deuses querem punir alguém, eles atendem os seus pedidos”.

Visando a atender a esses desejos há vários projetos em trâmite nas casas legislativas federais, que se propõem como eficiente bálsamo para aliviar a praga das notícias falsas na internet. Afinal quem não aplaudiria um lenitivo para isso? Mas há consequências numa legislação que inclui a necessidade de identificação positiva dos usuários de rede e o rastreamento das mensagens que são repassadas. 

Além de eventuais dificuldades intransponíveis para sua implantação na rede global, os projetos trarão grandes riscos à nossa privacidade e ao exercício da liberdade de expressão na Internet. Muitas vezes eivados de imprecisões técnicas graves e que sugerem pouca familiaridade com aspectos técnicos do funcionamento da internet, eles oneram essencialmente os que estão à mão, os inocentes. 

Projetos feitos sem extenso debate prévio com a comunidade, podem levar a leis que se comportem como teias de aranha: apanham os pequenos insetos, enquanto os maiores as rasgam e escapam. E perde-se o objetivo de se construir um ambiente jurídico coerente e seguro. Hoje, quando celebramos a existência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), é irônico ver outras propostas indo em direção a crescente vigilantismo, com riscos, até, de deformar o Marco Civil da Internet.

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O risco dos pedidos apressados lembra A Mão do Macaco, um curto e sombrio conto de W.W.Jacobs, escrito em 1902. Resumidamente, um casal idoso e seu filho jovem recebem uma visita de um major, antigo amigo, e na conversa fala-se sobre magia. O major alerta que isso é algo perigoso, que se deve evitar. Mostra uma mão mumificada de macaco, que teria poderes para atender três desejos, e sugere que ela seja jogada ao fogo, pelos riscos que representa. A família inicialmente ri-se do caso mas, ao final, decide ficar com o tal objeto, ao invés de destruí-lo. Não resistindo à ideia de testar os poderes do amuleto resolvem pedir-lhe que seja saldada a dívida remanescente da compra da casa: 200 libras. No dia seguinte, após o filho seguir ao seu emprego, recebem uma nova visita: é o representante da empresa onde o filho trabalha, trazendo uma notícia funesta: o jovem teria sido atingido pela máquina que operava e falecera. E a empresa, contristada, envia aos pais a quantia de 200 libras como maneira de aliviar a dor…

O conto segue – ainda há dois desejos disponíveis – porém, já fica claro que podemos nos arrepender amargamente quando formulamos pedidos mal engendrados. O pedido foi atendido: as 200 libras chegaram, mas perdeu-se um bem muito maior! A pressa na construção de um remédio pode sair mais grave que o mal que se pretendia combater. 

Opinião por Demi Getschko
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