Brasileiros ficam em limbo jurídico ao usar serviços estrangeiros

Usuários de WhatsApp e Secret que são vítimas de constrangimentos e abusos não têm a quem recorrer pois empresas não têm escritório no País

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Por Bruno Capelas
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SÃO PAULO – Era mais um dia normal na vida de Alice (nome fictício), estudante de Engenharia de Produção na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Ao chegar à faculdade, porém, havia algo estranho: os colegas nos corredores pareciam estar falando dela. Até que um amigo comentou: “Tá rolando uma foto sua fazendo sexo no WhatsApp da turma”. A garota, que nunca tinha tirado fotos assim, sabia que se tratava de uma montagem. Em pouco tempo, a imagem tinha se espalhado pela faculdade, e até professores vieram questioná-la sobre o assunto.

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Advogada, a mãe de Alice decidiu entrar com uma ação judicial para tentar descobrir os responsáveis pela fotomontagem, em maio de 2014. No entanto, não bastava apenas ter a reprodução das telas de conversas no WhatsApp. Era preciso descobrir os IPs dos “culpados”.

Para isso, era necessário, através de uma ordem judicial, entrar em contato com o aplicativo de mensagens, que não tem representação legal no Brasil. Não seria fácil: sediada nos EUA, sem escritório no País, a empresa não tem a obrigação de aceitar uma decisão da Justiça brasileira, deixando seus usuários em um limbo jurídico.

Aplicativos “gringos” como WhatsApp, Snapchat e Secret somam muitos usuários no Brasil (estima-se que o primeiro, por exemplo, seja usado por cerca de 45 milhões de brasileiros) oferecendo serviços que envolvem dados privados. No entanto, quando os direitos desses usuários são violados, as decisões da Justiça brasileira não conseguem alcançá-los.

Global ou local? “O direito sempre foi muito baseado em um território, com empresas e pessoas submetidas a uma jurisdição territorial, como uma cidade ou um país. Com a internet, esses problemas se entrelaçam”, avalia Dennys Antonialli, pesquisador do InternetLab, centro de pesquisa em direito e tecnologia. Segundo ele, há dois caminhos possíveis para conseguir buscar seus direitos caso uma empresa estrangeira esteja envolvida. Pode-se abrir uma ação judicial diretamente no país-sede da companhia ou pedir uma carta rogatória, documento que envia o processo para o exterior (veja quadro ao lado). “São processos caros e burocráticos”, explica Antonialli.

Uma terceira estratégia foi utilizada pela mãe de Alice: ao ver que não conseguiria atingir o WhatsApp, Adriana Cavalcanti decidiu entrar com uma ação contra o Facebook Brasil, para ter acesso aos IPs dos responsáveis pelas montagens com sua filha. “É algo previsto no artigo 11 do Marco Civil da Internet, que diz que se o usuário estiver no Brasil, a lei brasileira deve ser aplicada, mesmo que a empresa seja estrangeira”, diz Antonialli. Em um de seus parágrafos, o artigo diz ainda que, caso a empresa seja estrangeira, mas possua “uma integrante de seu grupo econômico” com estabelecimento no Brasil, a sede local pode ser processada.

Em setembro de 2014, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu ganho de causa à advogada, mas o Facebook recorreu da ação, que espera julgamento no segundo grau. “Apesar de ainda estar em julgamento, o que nós tivemos é uma importante vitória contra essa situação ostensiva que o Facebook e outras empresas impõem ao povo brasileiro”, diz Adriana.

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Procurada pela reportagem, a rede social responde que, “no Brasil, temos apenas um escritório de vendas e não respondemos pelo WhatsApp”.

Para o pesquisador do InternetLab, a estratégia jurídica é interessante, embora não pudesse ter sido utilizada naquele momento. “A união de Facebook e WhatsApp estava pendente naquele momento, e só aconteceu semanas depois. Enquanto partes de grupos econômicos diferentes, o Facebook Brasil não podia responder naquele momento pelo WhatsApp”, diz.

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Anônimos. Febre durante 2014, o aplicativo Secret, que permitia a publicação de textos e fotos anonimamente, também foi alvo de um caso judicial no País. Movido pelo consultor de marketing Bruno Freitas Machado, que se sentiu lesado ao ter fotografias íntimas suas divulgadas na rede, o processo acabou indo parar nas mãos do Ministério Público, que conseguiu suspender o app nas lojas do Android, Windows Phone e iOS. Mesmo com a retirada, os responsáveis pela publicação ainda não foram encontrados.

“Como tantas outras vítimas do Secret, ele acabou tendo seu direito cerceado”, diz Gisele Arantes, advogada do consultor. “Festejamos tanto o pioneirismo do Marco Civil, mas, na hora que ele precisa ser utilizado, não funciona”, reclama. Mais do que simplesmente ofender, no entanto, o Secret tinha outro problema: ele incentivava o anonimato, o que fere a Constituição brasileira. No entanto, a liminar que concedeu a suspensão, e que também buscava remover o aplicativo dos celulares de quem já o tinha baixado, foi cassada – e, após uma atualização, o aplicativo voltou a integrar o acervo da Play Store, do Google.

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Para Dennys Antonialli, o caso do Secret é simbólico quando o assunto é o tratamento com apps estrangeiros. “Ele ilustra o poder máximo do Artigo 11, que é banir o serviço do Brasil. Aplicar uma multa ou constranger a empresa não adiantaria nada, porque ela não tem escritório aqui”, diz o pesquisador. Cuidados. Diante de situações como essa, o que fazer?

Especializado em direito digital, o advogado Omar Kaminski recomenda pensar duas vezes antes de entrar com um processo judicial. “É algo que custa muito e costuma ser bastante demorado. Além disso, as indenizações no Brasil são irrisórias em proporção ao trabalho, dificilmente ultrapassando a marca de R$ 20 mil”, diz ele, que espera das empresas responsáveis por lojas de aplicativos uma maior supervisão face a problemas como esses.

Já Dennys Antonialli aconselha: “é bom ficar atento aos termos de uso dos aplicativos que você usa, em que dados eles coletam, e ter cuidado nas interações que você faz nas plataformas. Você conhece quem está no mesmo grupo de WhatsApp que você? Assim como você pode demandar uma coisa de alguém, você pode ser demandado”, diz o pesquisador, que recomenda ainda aos cidadãos que se inteirem de seus direitos. “É importante participar, por exemplo, do processo de regulamentação do Marco Civil. Ele é uma lei, mas entender e definir a maneira como ele será utilizado pode mudar as coisas no País”, completa.

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