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Jornalista, escritor e palestrante. Escreve às quintas

Opinião|Censura à moda digital

Ao promover um ambiente online de constante intimidação, o que a cultura do cancelamento consegue é travar debates

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A polarização éparticularmente exacerbada nos ambientes digitais Foto: Dado Ruvic/Reuters

Precisamos dar uma parada de arrumação — está tudo desorganizado. É natural, a história faz isso de tempos em tempos. Mas democracias liberais seguem uma lógica. Não são um conjunto de regras que um grupo de filósofos bolaram e, na prática, pareceram agradáveis daí adotamos. Não. As regras nascem de uma lógica, e o importante é a lógica, não as regras. No conjunto, podem ser isoladas em três grupos. O primeiro é que ninguém tem todo o poder nas mãos. O segundo, que as pessoas têm direitos que o Estado não pode tirar senão em casos muito excepcionais. E, por fim, que para tudo funcionar é preciso estimular um ambiente de liberdade para o debate. Para o fluxo de ideias. Esta última perna travou. Em parte, a culpa é da mudança tecnológica.

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São três os processos que fizeram o debate travar. Um é a polarização. O segundo é a quebra da ideia de que há autoridades para tratar de certos temas. E, amarrando a ambos, a internet, que colabora — se não para fazer surgir estes problemas, para catalisar e ampliar seus efeitos.

Quando construiu seu argumento das liberdades de imprensa e de expressão, o inglês John Stuart Mill tinha em mente aquilo que batizou de mercado de ideias. A liberdade de expressão era poder falar o que pensa a um grupo. A de imprensa é imprimir e distribuir este conteúdo. O impresso, no oitocentismo de Mill, rodava em seu ritmo lento. Demorava para chegar às pessoas, a ser lido, e o tempo para reflexão era amplo. Ideias cozinhadas ao longo dos anos, que recebiam contribuições e evoluíam pelo debate, a um ponto terminavam adotadas. Ou descartadas.

Censura era a forma de atentar contra tais liberdades. Ou seja: proibir alguém de falar em público ou, pior, de imprimir e distribuir o que sabe ou pensa. Um atentado sério à democracia por travar o mercado de ideias e, portanto, a evolução da sociedade.

Professor de Direito da Universidade de Columbia, há alguns anos Tim Wu argumentou que spam e robôs, nas redes sociais, são a forma moderna de censura. Por quê? Porque sujam a linha do tempo, enchem de lixo e ruído o debate a ponto, muitas vezes, de travá-lo.

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À época, não se falava em cancelamento ainda. O hábito de atacar em massa políticos, artistas, jornalistas, cientistas quando um grupo não gosta do que dizem. Mas, aqui e ali, esta percepção começa a se consolidar. Falando num seminário em Harvard, em outubro passado, a diretora da Coalizão Americana para Combate à Censura, Svetlana Mintcheva, falou justamente isso. A cultura que surge online de ataques a pessoas por suas ideias representa uma nova forma de censura. Colunista da Marie Claire britânica, Olivia Foster observou o mesmo. Ao promover um ambiente online de constante intimidação, o que a cultura do cancelamento consegue é travar debates.

A polarização, particularmente exacerbada nos ambientes digitais, produz efeito similar. Num ambiente em que o Brasil e o mundo assistem às democracias sendo atacadas por dentro, muitas vezes pelos próprios governantes, grupos de democratas se mostram incapazes de convergir. Mais importante do que defender democracias é posar, nas redes, de leal às ideias da tribo e fiel a ponto de não conversar com os infiéis.

São, todas, formas modernas de censura. Porque, embora não proíbam a circulação de ideias, provocam justamente isso, além de impedir que o debate aconteça. Ninguém ouve ninguém. A solução simples seria que Facebook, Twitter, Google ou outras pusessem seus cérebros para resolver este que é o mais sério problema para a manutenção de democracias: a da facilitação do debate. Não de sua trava.

Mas não parece que, de lá, vá sair qualquer coisa.

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