Escassez de laptops gera abismo digital nos EUA

Aumento na demanda mundial por laptops de baixo custo gerou atrasos nas remessas e colocou escolas desesperadas umas contra as outras; regiões com mais recursos costumam vencer

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Por Kellen Browning
Atualização:
Até pouco tempo, o filho de 13 anos de Samantha Moore, Raymond Heller, estava compartilhando um iPad com três irmãos na Carolina do Norte Foto: Jeremy M. Lange/The New York Times

Quando as escolas do condado de Guilford, na Carolina do Norte, gastaram mais de US$ 27 milhões para comprar 66 mil computadores e tablets para alunos durante o verão, o distrito enfrentou um problema: havia uma escassez de laptops baratos e os dispositivos não chegariam até o final de outubro ou novembro. Mais de 4 mil alunos do distrito tiveram que começar o ano letivo – que nos EUA, começam em setembro – sem os computadores de que precisavam para o ensino à distância.

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“É de partir o coração”, disse Angie Henry, chefe de operações do distrito. “As crianças estão entusiasmadas com a escola. Elas querem aprender. ” Milhões de crianças estão enfrentando todos os tipos de inconvenientes que vêm com o ensino à distância durante a pandemia do novo coronavírus. Mas muitos alunos estão enfrentando um desafio mais básico: eles não têm computadores e não podem assistir às aulas realizadas online.

Um aumento na demanda mundial dos educadores por laptops e Chromebooks de baixo custo – até 41% maior do que no ano passado – tem criado atrasos de meses nas remessas e colocou escolas desesperadas umas contra as outras. Distritos com mais recursos financeiros geralmente vencem, fazendo com que os mais pobres tenham que distribuir tarefas impressas e esperar até o inverno para a chegada de novos computadores.

Isso tem frustrado estudantes em todo o país, especialmente em áreas rurais e comunidades negras, que muitas vezes também não têm acesso de alta velocidade à internet e têm maior probabilidade de estar na parte mais profunda do abismo digital. Em 2018, 10 milhões de alunos não tinham um dispositivo adequado em casa, apontou um estudo da organização sem fins lucrativos Common Sense Media. Essa lacuna, com grande parte do país ainda estudando remotamente, agora pode ser devastadora.

“A perda de aprendizado que ocorre desde março, quando eles foram para casa, quando as escolas fecharam, levará anos para se recuperar o atraso”, disse Angie. “Isso pode impactar toda uma geração dos nossos alunos.”

Demanda por todo tipo de computador deixa dispositivos de baixo custo em segundo plano

Os vendedores estão enfrentando uma demanda impressionante de escolas em países da Alemanha a El Salvador, disse Michael Boreham, um analista de tecnologia educacional da Futuresource Consulting, uma empresa britânica. Espera-se que apenas o Japão encomende 7 milhões de dispositivos. As remessas globais de computadores para escolas aumentaram 24% em relação a 2019 no segundo trimestre, disse Boreham, e foram projetadas para atingir esse salto de 41% no terceiro trimestre, que acabou de terminar.

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Os Chromebooks, dispositivos criados para acessar a internet que funcionam com um sistema operacional desenvolvido pelo Google e são feitos por uma série de empresas, são especialmente procurados porque custam menos do que laptops normais. Isso colocou uma enorme pressão sobre uma cadeia de suprimentos que conserta peças de laptop de todo o mundo, geralmente montando-os em fábricas asiáticas, disse Boreham.

Em 2018, 10 milhões de alunos não tinham um dispositivo adequado em casa Foto: Jeremy M. Lange/The New York Times

Embora essa cadeia de suprimentos tenha se acelerado lentamente, o pico na demanda está “muito além do que tem acontecido historicamente”, disse Stephen Baker, analista de bens de consumo eletrônicos do NPD Group. “O fato de termos sido capazes de fazer isso e ainda haver mais demanda por aí, é algo que você não pode planejar.”

Para agravar o problema, muitos fabricantes estão priorizando a produção de eletrônicos caros que gerem lucros maiores, como hardware para jogos e computadores de última geração para pessoas que estão trabalhando em casa, disse Erez Pikar, CEO da Trox, empresa que vende dispositivos para os distritos escolares.

Antes do início do ano, a Trox previu que entregaria 500 mil dispositivos a distritos escolares nos Estados Unidos e no Canadá em 2020, disse Pikar. Agora, o total será de 2 milhões. Mas as escolas norte-americanas ainda devem terminar o ano com uma escassez de mais de 5 milhões de dispositivos, disse ele. Pikar acrescentou que não estava ciente de nenhum esforço em grande escala para conseguir laptops remanufaturados ou doados aos distritos escolares.

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Escolas de áreas mais pobres estão com maior problema para receber aparelhos

Os distritos que fizeram pedidos no início da pandemia saíram na frente, disseram analistas do setor, enquanto as escolas que esperaram até o verão – muitas vezes porque estavam lutando para sobreviver – estão em desvantagem.

O Distrito Escolar Unificado de Los Angeles gastou US$ 100 milhões em computadores em março e disse em setembro que não foi afetado pela escassez. Mas as Escolas Públicas de Paterson, em Nova Jersey, tiveram que esperar até receber o auxílio federal por conta do novo coronavírus no final de maio para encomendar 14 mil Chromebooks, cuja entrega foi depois atrasada devido às restrições do Departamento de Comércio a um fabricante chinês, a Hefei Bitland.

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As escolas do Alabama estão esperando por mais de 160 mil dispositivos, e o Mississipi não recebeu o primeiro dos 320 mil computadores que o estado encomendou até o início de outubro. A Staples disse que receberia 140 mil Chromebooks para escolas em novembro e dezembro, 40 mil dos quais destinados aos distritos da Califórnia.

Cerca de 10 dos 120 alunos de Daniel Santos em Houston disseram a ele que precisam de um laptop Foto: Michael Starghill Jr./The New York Times

Daniel Santos, um professor do oitavo ano em Houston, entra em sua sala de aula virtual em casa todas as manhãs e começa a aula de história americana do dia. Depois que ele deixa seus alunos livres para trabalhar nas tarefas, as conversas difíceis começam. Se os alunos param de entregar as tarefas regularmente, Santos pergunta a eles em particular:” Você tem acesso a um laptop?” Um menino disse que ele e o irmão compartilhavam um computador em casa, o que dificultava a frequência das aulas. Outros realizavam tarefas em seus celulares.

“Isso parte meu coração”, disse Santos, que ouve a “tristeza” na voz dos alunos. “Eles querem fazer as tarefas deles.”

Problema leva muitos distritos a pressionarem retomada de aulas presenciais

As escolas do condado de Guilford, com 73.000 alunos, estão enfrentando o mesmo problema na Carolina do Norte. O distrito encomendou laptops em agosto com a ajuda do projeto de lei de auxílio devido ao novo coronavírus em março, disse Angie.

Muitas crianças na área vivem na pobreza e não têm computadores pessoais ou serviço confiável de internet, disse ela. Aqueles que não podem assistir às aulas virtuais estão recebendo tarefas impressas entregues em suas casas. Alguns estão assistindo a gravações de aulas quando podem usar um dispositivo, e um pequeno número teve acesso permitido em prédios distritais para acesso ocasional a computadores e Wi-Fi, disse Angie. 

O distrito está pressionando para retomar algumas aulas presenciais no final de outubro por causa do crescente abismo entre ricos e pobres.

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Três dos filhos de Samantha em seu quintal em Greensboro, N.C. "Não posso simplesmente sair e comprar quatro computadores", disse ela Foto: Jeremy M. Lange/The New York Times

No leste de Idaho, o distrito escolar de Bonnevilleestá dando aulas presenciais, mas centenas de alunos tiveram que ficar em quarentena após uma possível exposição ao vírus — e o distrito disse que não tinha Chromebooks suficientes para todos eles. O distrito não fez seu pedido de US$ 700 mil para 4 mil dispositivos até o final de setembro por causa de desafios orçamentais, disse Gordon Howard, diretor de tecnologia de Bonneville.

Enquanto aguardam o pedido, os alunos sem computadores ficam sem acesso à educação. “Aqueles que estão para trás continuam a ficar ainda mais para trás, e não é culpa de modo algum das crianças”, disse Scott Miller, diretor da Hillcrest High School do distrito de Bonneville em Ammon.

Muitos alunos da Escola Indígena Sante Fe, administrada por povos nativos do Novo México, vivem em casas tribais sem acesso Wi-Fi, disse Kimball Sekaquaptewa, diretora de tecnologia da escola. A escola encomendou laptops com cartões SIM integrados que não requerem Wi-Fi para se conectar à internet.

Mas a data de entrega do pedido de julho foi adiada para outubro, obrigando os alunos a começar o ano letivo sem aulas remotas. Em vez disso, eles foram solicitados a encontrar uma rede Wi-Fi pública duas vezes por semana para fazer download e upload de tarefas. “Há muita frustração”, disse Kimball. “Queríamos mesmo começar as aulas com entusiasmo, mas agora estamos no limbo.” / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA