Marco Civil mostra que 'a democracia funciona; mas dá muito trabalho'
Para Ronaldo Lemos, outros projetos como a Lei de Proteção de Dados Pessoais devem enfrentar as mesmas dificuldades do Marco Civil para serem aprovados
23/04/2014 | 10h41
Por Redação Link - O Estado de S. Paulo
Anna Carolina Papp
Murilo Roncolato
SÃO PAULO – A diretora da ONG Coletivo Digital Beatriz Tibiriçá mal havia iniciado sua fala na mesa de abertura do ArenaNetMundial, no Centro Cultural de São Paulo, quando veio a notícia de Brasília — o projeto de lei havia sido aprovado por unanimidade no Senado. O advogado Ronaldo Lemos, que abriu a mesa e é um dos maiores responsáveis pela elaboração do projeto, conversou com o Link minutos antes e comentou, confiante, sobre a importância da aprovação do Marco Civil, que ainda estaria por vir.
“A grande lição do Marco Civil é que a democracia funciona, mas dá muito trabalho”, disse. “Estamos nessa desde 2006, 2007. Há outros projetos em tramitação atualmente, como a Lei de Proteção de Dados Pessoais, além da Lei de Direitos Autorais. Todas vão passar pelas mesmas dificuldades”, disse ele em um evento em São Paulo do Instituto de Tecnologia e Sociedade, da UERJ. O painel sobre a governança da rede contou com autoridades como Vint Cerf, membro do grupo criador do protocolo TCP/IP e vice-presidente do Google, e Jeanette Hofmann, do Instituto von Humboldt.
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Lemos era coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade, da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, quando, em parceria com a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, participou do desenvolvimento do texto que passaria meses, entre 2009 e 2010, sob consulta pública, acolhendo sugestões abertamente pela internet. “O Marco Civil cresceu muito em dimensão, a ponto de todas essas pessoas que estão nessa sala (referindo-se ao evento), que são as que mais entendem de governança da internet atualmente, sabem do que se trata e têm opiniões sobre o projeto”, disse.
Vint Cerf, chamado “pai da internet”, também mostrou seu apoio à legislação brasileira. “A primeira coisa que ele disse logo que me avistou foi: ‘E aí, já aprovaram?’”, conta Lemos. Ao Link, Cerf disse que o projeto de lei demandou ”muita persistência, tempo e energia”. “Foi preciso conscientizar as pessoas para que pudessem perceber por que ele era necessário e mostrar como ele seria aplicado”, disse ele.
O engenheiro e matemático pontuou, no entanto, que os modelos de governança da internet, incluindo o multissetorialismo — que é o foco do NETmundial, por ser considerado mais adequado –, precisam ser abertos a inovações na área. “Não podem ser desenhos rígidos que vão ficar obsoletos quando a tecnologia mudar. As pessoas vão sim criar novos modos de usar a rede, e a legislação precisa acompanhar isso. O desafio é manter a internet aberta, para que possamos ouvir e ser ouvidos, de maneira segura’”, disse.
Multissetorialismo. Ainda sobre o multissetorialismo,que prevê que a gestão da internet deve ser fruto de debates entre governos, academia, setor privado, técnico e sociedade civil, Cerf, que se declara um fã do modelo, afirma que este precisa ser flexível e que a equação de participação de cada setor deve levar em conta a natureza do tópico em discussão.
“Às vezes, o problema é muito técnico, então o ideal é que a comunidade técnica e acadêmica encabecem. Neste caso, talvez os outros setores tenham menos habilidade para lidar com essa questão”, diz. “Nem todos poderão se envolver em todas as decisões o tempo todo. Há uma falsa percepção de que democracia, o modelo representativo, e o modelo multissetorial são a mesma coisa. Os dois são importantes, mas não são a mesma coisa”, afirma.
“Pode o modelo multistakeholder (multissetorialismo) substituir a democracia? Nunca. Neste modelo, participa quem quer participar. Já na democracia, todos precisam participar”, diz Lemos. “Se você chega no deputado e fala que o Marco Civil teve 80 mil sugestões, ele diz que teve 150 mil votos e por isso é mais legitimado. Essa tensão existe; não dá para substituir, mas dá para complementar. Um tem o que aprender com o outro.”
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Daí a importância, afirma Jeanette Hofmann, de incentivar a participação da sociedade civil — e isso começa por legislações mais claras e compreensíveis, sobretudo acerca de questões de privacidade. “A linguagem do texto é o que realmente importa. Acredito que este é o primeiro passo para desenvolvermos uma linguagem mais adequada com a qual fiquemos confortáveis; e o próximo passo, que deve ocorrer após o NetMundial, é a implementação — como podemos conectar de forma concreta direitos humanos à governança da internet. E devemos começar pelo direito à privacidade”, disse ela, que exemplifica com a questão do big data. “Tudo que usamos de graça na internet, como ferramentas de pesquisa, pagamos com nossos dados privados. É um dilema enorme, que precisa ser debatido.”
Contramão
Para Lemos, aprovar o Marco Civil é um “golpe” contra países como China e Turquia, responsáveis por leis autoritárias sobre a rede. Em fevereiro, a Turquia passou uma lei que delega à agência de telecomunicações do país a autoridade de censurar qualquer conteúdo. Em março, Twitter e YouTube foram bloqueados. “O Marco Civil garante em lei que os usuários têm direitos e, por isso, dá condições de nos defendermos de imposições de governos”, diz.
O criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee, disse em março que, com o Marco Civil, o País consolidaria “sua orgulhosa reputação como um líder mundial em democracia e progresso social”, além de inaugurar “uma nova era” para os usuários. Para Ronaldo Lemos, o projeto carrega um caráter “único”, que é o de contemplar diversos temas importantes sobre a internet. “Lá fora, as questões que estão no Marco Civil são discutidas separadamente. O Marco Civil sistematiza boa parte das questões, assim como o Código de Defesa do Consumidor faz. Hoje ele já está na boca do povo, e queremos que seja a mesma coisa com o Marco Civil.”
Pioneirismo
Com a aprovação, o governo brasileiro atinge seu objetivo de dar partida na NETmundial com a base legal sobre internet definida. O evento, que se propõe discutir os rumos da governança da internet, termina nesta quinta-feira, produzindo um texto com princípios de governança e uso da rede.
“São princípios, não tem poder de lei como o Marco Civil, mas é um começo”, disse Lemos. Apesar de considerar que a aprovação do projeto no Brasil pode servir de base para outros países, o Brasil não deve ter a pretensão de recomendar na NETmundial que outros países tenham suas próprias versões do Marco Civil. “Seria deselegante. O que pode acontecer é dizer que é uma boa prática que o Brasil fez e pode ser inspiradora para todos que querem seguir nesse caminho”, diz.