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Marco Civil: 'Preservar coerência é importante'

Entrevista com Carlos Affonso de Souza, professor da UERJ e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS)

Por Murilo Roncolato
Atualização:

Entrevista com Carlos Affonso de Souza, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS)

Sobre a obrigatoriedade da guarda de dados brasileiros em datacenters localizados no País, possibilidade que o novo Marco Civil permite que Executivo faça por meio de decreto. É viável discernir dado brasileiro de dado de fora? Há alternativas?  

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SÃO PAULO – O projeto de lei nº 2126/2011, o chamado Marco Civil da Internet, foi adiado nesta terça-feira, 29, pela primeira vez após o Executivo ter colocado sua tramitação sob regime de urgência (embora no total, o projeto já tenha sido formalmente adiado cinco vezes). O prazo, no dia 28 de outubro, estourou, o que fez com que o adiamento da votação trancasse a pauta da Câmara. Isso significa que enquanto não for votado, não se vota mais nada. O texto recebe sugestões de mudanças há quatros anos, sendo entre 2009 e 2011 pela sociedade civil interessada através de consultas públicas; e nos dois últimos anos, por parlamentares.

Marco Civil: ‘Faz sentido guardar dados no Brasil’+ Marco Civil: ‘Há pontos de retrocesso’Votação do Marco Civil da Internet é adiada

Nesta reta final, mais alterações estão previstas e ambos os lados sabem que a briga será das grandes. Até lá, publicaremos no site do Link entrevistas com pessoas influentes sobre o assunto e envolvidos diretamente nas discussões. Na terceira entrevista da série, conversamos com Carlos Affonso de Souza, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) e ex-pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (CTS-RJ), onde as bases do Marco Civil foram desenhadas em 2009. Depois de lá, o texto foi colocado sob consulta pública antes de finalmente ir para o Congresso em forma de projeto de lei, em 2011.

Confira a entrevista:

O governo defende obrigar provedores de conteúdo a guardar dados sobre brasileiros em território nacional. Com o senhor avalia a proposta? Ela deve estar no Marco Civil? 

O armazenamento forçado de dados pessoais de brasileiros no País não figurou na consulta pública sobre o Marco Civil. É claro que o processo que se iniciou com a consulta na rede e que hoje chega na etapa de votação na Câmara submete o texto às mais variadas transformações de acordo com a evolução dos debates, mas seria importante manter coerência com o que vem sendo debatido desde 2009 e não aprovar redações de afogadilho.

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Os impactos dessa medida, como a criação de datacenters e o aprimoramento da infraestrutura técnica, são muito bem-vindos, mas é importante refletir sobre se a inserção desse texto no Marco Civil seria a melhor forma de se alcançar esse resultado. Existem, inclusive, outros processos em andamento que poderiam atuar como fóruns mais adequados para se avançar essa discussão, como a própria Lei Geral sobre Dados Pessoais no Brasil, a ser proposta pelo Poder Executivo como uma segunda etapa de consulta já realizada na internet.

Vale lembrar que existem desafios tanto tecnológicos como jurídicos que precisam ser analisados sobre essa medida, como: (i) a questão da territorialidade (como garantir que a pessoa está no Brasil? E se o brasileiro se conecta via VPNs ou Tor, começando a conexão no Brasil e saindo em outro país?); (ii) da reciprocidade (e se os outros países começarem a exigir o mesmo de empresas brasileiras operando no exterior?); (iii) o impacto no grau de inovação, além de (iv) incentivar o movimento de fragmentação da rede, com a adoção de leis que dificultam a interoperabilidade na internet, e (v) forçar o armazenamento de dados em país que ainda precisa fazer o dever de casa no que diz respeito à aprovação de uma lei geral sobre dados pessoais que avance essa tutela para padrões compatíveis com as necessidades de proteção dos usuários na rede.

Vê alguma contradição em o governo defender a governança multissetorial (multistakeholder) e a neutralidade lá fora enquanto por aqui o CGI foi retirado do texto do Marco Civil, e o princípio da neutralidade ainda não foi aprovado?

De nada adianta defender a governança multissetorial no exterior e não aprovar um Marco Civil condizente no cenário interno, que tutele a neutralidade da rede, conforme defendido pela Presidente Dilma em seu discurso na Assembléia Geral das Nações Unidas, e prestigie o debate diverso realizado desde 2009. Por vezes, pode ser difícil encontrar um discurso que seja absolutamente coerente dentre as mais diversas instâncias de representação governamental, mas no presente momento o Brasil parece levar a fóruns internacionais um direcionamento que é compartilhado por todas essas instâncias. Essa afinação do discurso é fundamental se o País quiser efetivamente liderar o debate sobre governança da rede, pois dois dos mais óbvios pontos fracos nessa estratégia seriam a indicação de contrariedades entre posicionamentos de diversas instâncias de representação governamental (levando os demais países a se perguntar qual seria efetivamente a proposta brasileira) e não adoção domesticamente do que se prega lá fora.

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Como vê a aproximação do ICANN com o Brasil? O debate sobre governança interfere de que maneira no Marco Civil?

O Brasil tem historicamente uma participação muito destacada nos fóruns de governança e regulação da internet, desde a Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação, passando pelos encontros da própria ICANN e do Internet Governance Forum (IGF), da ONU. Em um cenário em que se debate o melhor modelo para a governança da rede, a defesa do chamado modelo multistakeholder (multissetorial) se tornou quase um mantra. Contudo, existem ainda poucas pesquisas e reflexões sobre experiências práticas que possam criar estratégias e recomendações sobre como esse modelo deve ser implementado, tanto nacional como internacionalmente.

Nesse cenário, o Brasil se destaca por ter um corpo multissetorial atuante como o Comitê Gestor da Internet por mais de uma década e atrai a atenção de outros países e entidades internacionais. Mas mesmo no Brasil os impactos de se ter um órgão multissetorial para a governança da rede ainda estão longe de ser amplamente mapeados, embora já existam estudos sobre experiências práticas em que esse caráter multissetorial foi testado, como a adoção dos “Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil” e o processo de gerência da Porta 25/TCP, que levou à redução drástica do volume de spam enviado a partir de computadores localizados no País.

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Acredita que alguma alteração possa ser feita nos artigos nono, 13º e 15º? 

Os pontos mais discutidos são mesmo neutralidade da rede (nono), responsabilidade de provedores (15º) e a chamada localização forçada de dados pessoais no País (15º). Mas a forma pela qual esse debate se espalha no Marco Civil pode fazer com que emendas sejam apresentadas de forma direcionada a um outro artigo, mas tendo por objetivo, por exemplo, alterar a dinâmica da neutralidade da rede. Modificações sobre o conceito de usuário, seus direitos ou mesmo a inserção de provisão sobre “franquia de dados” fora do artigo nono (que trata de neutralidade) são alguns exemplos de novidades que poderiam aparecer e alterar sensivelmente a lógica do Marco Civil.

Tirar a questão dos direitos autorais do artigo 15º, deixando-o para ser regulamentado pela Lei de Direitos Autorais (LDA), pode gerar tratamento diferenciado e assim ferir o princípio da isonomia? 

A existência de dois regimes jurídicos distintos para a tutela dos direitos autorais e de outros direitos na internet não seria uma inovação brasileira, caso o Marco Civil seja aprovado dessa forma. Nos Estados Unidos, convivem os dispositivos do Communications Decency Act (“CDA”, que trata da responsabilidade de provedores de forma geral) e do Digital Millenium Copyright Act (DMCA, que trata especificamente de direitos autorais). No modelo norte-americano, o CDA cria um regime de isenções para os provedores no que diz respeito à possibilidade de ser responsabilizado por conteúdo de terceiro. Já o DMCA estabelece um regime de notificação e retirada (“notice and takedown”) de conteúdos que infrinjam direitos autorais.

Uma das justificativas encontradas para a existência de dois sistemas, sem levar em consideração os fatores políticos que levaram à adoção das duas leis, é uma eventual objetividade na apreciação do que é violação de direitos autorais na internet, inclusive com o desenvolvimento de ferramentas que conseguem identificar o conteúdo protegido e de forma automatizada promover a requisição de sua retirada. Essa justificativa é procedente para um grande número de casos, mas é importante destacar que a pretensa objetividade na análise da infração aos direitos autorais cede espaço a questões realmente complexas quando se discute se determinado uso da obra estaria ou não contemplado no regime de exceções e limitações do direito autoral (atualmente previstos nos artigos 46 e seguintes da LDA). Trata-se aqui de casos como o uso de pequenos trechos obra alheia, além do eventual conflito em nível principiológico que pode existir entre a tutela autoral e outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e acesso ao conhecimento.

Por isso mesmo se debate hoje qual seria o modelo a ser adotado pela LDA. Os defensores de um outro modelo que não a notificação e retirada apontam justamente o tratamento uniforme que se daria a casos complexos, sendo mesmo considerada a adoção de um sistema de notice and notice (“notificação e notificação”), inspirado no modelo canadense. Não se trata, vale dizer, de uma questão de superioridade em princípio de direitos autorais sobre demais direitos, mas sim a tentativa de se obter uma tutela jurídica que possa melhor atender as peculiaridades de cada espécie de dano. No aspecto penal, vale lembrar, já existe um procedimento expedito para a retirada de conteúdos de pornografia infantil, justamente por ser entender a extrema gravidade desse conteúdo.

críticas sobre o artigo 15º que dizem que ele fere princípios e dá atendimento especial aos provedores de conteúdo. 

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Não me parece que o Marco Civil esteja isentando provedores de responder por danos causados. Em se tratando de atos próprios, quando é o provedor o autor direto do dano, ele é inteiramente responsável pelo conteúdo por ele mesmo gerado. O artigo 15 do Marco Civil, por sua vez, trata especificamente dos casos em que o conteúdo é gerado por terceiro. Aqui se optou por demarcar a decisão judicial como o fator determinante para que o provedor venha a responder caso não retire um conteúdo quando ordenado pela decisão. Isso não impede o conteúdo de sair do ar nem o provedor de agir para retirar o conteúdo. O que o Marco Civil determina é apenas o momento a partir do qual o provedor seria responsabilizado.

A outra opção geralmente aventada, de tornar o provedor responsável caso não retire o conteúdo quando notificado de sua existência pela vítima, se por um lado atende à velocidade que se procura alcançar para danos que se multiplicam e disseminam de forma rápida na rede, por outro estimula um regime de constante censura privada. Recebendo a notificação, independentemente de sua procedência, o conteúdo seria removido para se evitar a responsabilização e consequentemente teríamos uma internet menos diversa e cada vez mais sujeita aos controles privados sobre a expressão alheia, seja por motivos mais nobres como a ofensa à honra e à privacidade, seja por questões pessoais como a não aceitação de opiniões contrárias, críticas e demais conteúdos que possam não agradar uma determinada pessoa ou grupo de pessoas. Nessa direção, o que faz o Marco Civil é procurar preservar o direito constitucional à liberdade de expressão, impedindo que se instale um sistema de caça desenfreada aos conteúdos postados na rede, sem qualquer critério ou restrição legal.

Ao mesmo tempo, criar mecanismos que possam incentivar que a pessoa que fez o upload do vídeo ou da foto, ou inseriu o texto pretensamente lesivo, seja responsabilizada por seus atos é uma medida salutar. Se por um lado parece ser mais fácil reconhecer o provedor como responsável e focalizar o ônus nessas empresas, é importante destacar o papel que os provedores exercem como instrumentos para potencializar a expressão na rede. O resultado de uma responsabilização em massa de provedores certamente não é o resultado ideal para quem busca preservar a internet como o meio de expressão rico que ela hoje representa.

Por isso, não existe inconstitucionalidade em se garantir que o provedor apenas seja responsabilizado caso não cumpra ordem judicial. Todavia, é igualmente importante que se desenvolvam mecanismos que permitam que o responsável direto pelo dano causado possa ser identificado e responsabilizado, sempre respeitando a privacidade dos usuários e procurando compreender como os diversos direitos fundamentais podem colidir e devem ser ponderados.

As mudanças feitas no texto comprometem princípios do texto, como o da liberdade da internet? Leis já aprovadas terão de ser revistas caso o Marco Civil seja aprovado? 

Quando se fala sobre liberdade na internet é preciso que se compreenda que livre, nesse sentido, não significa a ausência de leis. Muito pelo contrário, a liberdade é hoje garantida na rede justamente pela aprovação de leis que possam tutelar espaços para que os mais diversos direitos fundamentais possam ser exercidos da forma mais plena, aproveitando muitas das características de abertura da rede. O Marco Civil foi pensado como uma lei predominantemente principiológica, que não adentraria em maiores detalhes regulamentares e nem se preocuparia em descrever condutas e suas implicações. Na medida do possível, esse desenho foi preservado, mas é natural que as discussões típicas do trâmite legislativo tenham feito surgir sobre o texto original as sombras dos mais diversos interesses que estão relacionados com as atividades desenvolvidas na internet.

Temos sempre lembrado que o Marco Civil foi um experimento. Em 2009, ele representou a primeira tentativa do Brasil em inserir a internet como elemento radicalizante do componente democrático do processo legislativo. De lá para cá, tanto o Poder Executivo como o Poder Legislativo, têm avançado nesse debate e produzido novas iniciativas. Ainda há muito para se aprender e desenvolver sobre como incentivar uma participação cada vez mais diversa, como identificar consensos e divergências em determinadas questões, como decidir e informar adequadamente aos participantes as razões para adoção de um posicionamento e não de outro.

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Por isso o Marco Civil, se aprovado, certamente não será exatamente o mesmo texto resultante da consulta pública, mas existe espaço para o Brasil avançar e ser conhecido internacionalmente não apenas por ter saído na frente e produzido esse tipo de consulta, mas também para liderar os estudos que possam buscar um aperfeiçoamento metodológico constante de suas ferramentas. No futuro, quem sabe, teremos até mesmo sugestões de alterações regimentais que possam conferir às leis resultantes de consultas tão amplas como essa alguma forma de fazer com que elas cheguem ao Congresso com as marcas de revisão da coletividade, desafiando, nem que seja em nível argumentativo, as tentativas de sua revisão.

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