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Por dentro da rede

Opinião|Na regulamentação da internet, os fins não podem justificar os meios

Ambiguidade entre objetivos declarados em legislações e suas consequências está cada vez mais presente em projetos que tramitam em diversos países

Atualização:
Marco Civil da Internet é um marco da legislação brasileira e louvado internacionalmente Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Em recente artigo, Akriti Bopanna e Diego Canabarro examinam os objetivos e os riscos de legislações sobre a internet, na Índia e no Brasil. Os projetos são bastante similares (no caso brasileiro, trata-se do PL 2630, conhecido como “projeto de lei das fake news”) ao buscar, entre outros pontos, meios de rastreamento das informações que circulam na rede.

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O título do artigo, Um conto de duas propostas de rastreabilidade, remete ao Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens, em cujo começo lemos: “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero…”.

Essa ambiguidade entre os objetivos declarados da legislação e suas consequências, muitas vezes desastrosas, está cada vez mais presente em projetos que tramitam em diversos países. Elaborados muitas vezes de forma apressada e sem a necessária maturação que um amplo debate público poderia trazer, sob a égide de objetivos “elevados”, frequentemente trazem junto riscos aos usuários e à própria Internet, de se verem indevidamente controlados ou cerceados.

Uma legislação alemã, por exemplo, à guisa de proteger direitos autorais, não apenas dá direito como obriga plataformas a removerem conteúdos denunciados como potencialmente infringentes de direitos. Assim, além de repassar mais poder a elas (que já o tem com abundância no mercado internacional) assume a priori que o denunciado é culpado enquanto não provar sua inocência: a punição é aplicada imediatamente, com a remoção do conteúdo questionado.

Do lado das Américas, o Canadá também anda “inovando” na área. Tramita lá o projeto de lei C-10, já aprovado na Câmara (justamente nas últimas horas dos trabalhos legislativos antes do recesso) e seguirá agora ao Senado. O projeto, bastante complexo e polêmico, tenta definir o que seja “conteúdo nacional” e privilegiar sua disseminação na rede, inclusive quando se tratar de material publicado por indivíduos. Ou seja, é possível que os vídeos que os usuários colocam em plataformas possam ser prejudicados se não demostrarem a priori que possuem origem canadens. Como se faria isso, é outra e imponderável questão...

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Em outro exemplo, e este com o argumento de se combater a organização de crimes pela rede, há proposta em discussão da Inglaterra que pede às plataformas a implementação de formas de quebra da criptografia em mensagens de usuários, ou do acesso ao texto original via uma “porta dos fundos” sorrateiramente implementada nos sistemas.

Num ambiente dinâmico e em expansão como a internet, é claramente necessário o acompanhamento e a atualização do arsenal legislativo para proteger principalmente os direitos dos cidadãos. Há uma forma boa de se conseguir essa constante atualização: trata-se de seguir os passos do que foi feito no caso do Marco Civil, uma legislação louvada internacionalmente como das melhores para o ambiente online. Assim, o “caminho das pedras” é conhecido e passa por discutirem-se a fundo os possíveis objetivos visados e, especialmente, evitarem-se nefastos efeitos colaterais, que acabem por nos privar de bens maiores.

Buscar açodadamente um objetivo, por quaisquer meios e sem levar em conta seus efeitos, é mau. Georges Bernanos, escritor francês que viveu no Brasil durante a 2.ª Grande Guerra, tem uma frase que ilustra bem esse risco: “O primeiro sinal de que a corrupção se instala numa sociedade ainda viva é que os fins passam a justificar os meios”.

*É ENGENHEIRO ELETRICISTA

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    Opinião por Demi Getschko
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