'O desafio é manter o Marco Civil conservador e revolucionário'

Entrevista com o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade Carlos Affonso Souza, membro da equipe que elaborou o Marco Civil, em 2007

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Por Murilo Roncolato
Atualização:
 

Com relatoria de Alessandro Molon (esq.), projeto foi aprovado nesta terça, na Câmara. FOTO: Dida Sampaio/Estadão

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SÃO PAULO – Carlos Affonso Souza é atualmente um dos diretores do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) do Rio de Janeiro, ao lado de Ronaldo Lemos e Marcelo Branco. Antes, a mesma equipe, além do atual diretor de relações institucionais do Facebook, Bruno Magrani, fazia parte do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas quando o Marco Civil da Internet foi desenhado em parceria com a Secretaria de Elaboração Legislativa do Ministério da Justiça – mesmo berço do Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais.

Quando o texto para foi lançado para consulta pública em 2009, Carlos Affonso estava na Coreia do Sul. Nesta última terça, enquanto o Congresso brasileiro finalmente aprovava o Marco Civil da Internet, o advogado virava a madrugada em Cingapura, onde participa de uma reunião da ICANN (Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números). De lá, ele comentou a redação do texto aprovado e que agora segue para o Senado Federal, a história da sua criação e o cenário no qual o projeto se coloca agora no Brasil.

O que achou das mudanças feitas? Qual a mais importante? A de maior destaque parece ter sido mesmo a remoção do dispositivo que tratava dos data centers. O mundo todo está discutindo como reagir às revelações trazidas à luz por Edward Snowden. Alguns países passaram a investir mais em segurança digital, outros procuram organizar modelos de tomada de decisão sobre a governança da rede que consigam escapar de um controle maior do governo dos EUA, e muitos passaram a defender abertamente medidas de fragmentação da rede.

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Qual a melhor forma de estabelecer qualquer regulação sobre a rede? Já existe uma dificuldade natural que deriva do fato da internet ser um recurso global, mas cujas leis aplicáveis são as leis dos países em si. Existe um desafio a ser vencido na próxima década que é o aperfeiçoamento das leis sobre a internet (o Brasil chegou tarde nesse jogo) de modo a que elas possam promover a interoperabilidade entre jurisdições, sem que isso atropele os direitos humanos e garantias fundamentais de devido processo em questões muito triviais como o acesso a dados pessoais ou a remoção de conteúdo quando os arquivos estão hospedados em outros países.

Como avalia o artigo retirado sobre data centers? A solução de se obrigar a instalação de data centers no país sem dúvida não era o melhor caminho para se perseguir esse ideal e para promover o desenvolvimento dessa infraestrutura tão necessária ao País. Nesse sentido, a sua ausência no texto aprovado parece positiva. Se o interesse em manter esse dispositivo por parte do governo era para reagir aos escândalos de vigilância em massa, certamente existem outros canais, até mais efetivos, passando pelo debate sobre transformações na governança da rede.

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Saindo data center, o projeto volta a se aproximar do que era antes, quando foi idealizado. Acha que o projeto se desconfigurou muito de lá para cá a ponto de afetar a integridade do Marco Civil? O Marco Civil tem mais de cinco anos. Ele surgiu como uma ideia em meados de 2007 como antítese ao movimento de proliferação de projetos de lei no Congresso Nacional sobre crimes na rede. O entendimento na época era no sentido de que o País deveria afirmar primeiro uma carta de direitos, como o Marco Civil, antes de debater as medidas para punir as infrações cometidas através da internet. O discurso do Presidente Lula no Fórum Internacional Software Livre de 2009, em Porto Alegre, é geralmente mencionado como o momento em que essa ideia ganhou corpo. Na época estávamos na Fundação Getúlio Vargas, onde fundamos o Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) juntamente com o Ronaldo Lemos e o Bruno Magrani.

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Naquela época, nasceu uma parceria entre o CTS e o Ministério da Justiça, que conduziu uma consulta aberta na internet sobre o texto do Marco Civil. Foi uma experiência pioneira no Brasil e no mundo, mas isso traz vantagens e desvantagens. A vantagem mais evidente é o fator colaborativo e a possibilidade de contar com especialidades e conhecimentos dos mais diversos, já que diferentes atores e setores se fizeram representar nesse processo. A desvantagem reside no fato de que ainda não havia um conjunto de metodologias ou melhores práticas sobre consultas públicas na internet e isso afeta o processo nas suas mais diferentes fases: desde o estímulo para que as pessoas participem e se sintam engajadas até o trabalho de identificação dos comentários recebidos, o seu processamento, e o feedback para a comunidade sobre o que foi incorporado e os motivos para a sua aceitação, transformação ou rejeição. Nesse sentido o Marco Civil foi uma experiência artesanal. Todo mundo trancafiado em uma sala lendo todos os comentários, agrupando por orientação e ao mesmo tempo tendo que viajar pelo Brasil em vários eventos para ajudar a espalhar a notícia sobre a iniciativa.

E como foi quando o projeto seguiu para o Congresso? Uma vez na Câmara, o texto sofreu várias alterações e era esperado que isso viesse a ocorrer. O que chamou atenção foi como o debate, muito focado nos temas controvertidos, progressivamente foi sendo transformado em peça de acertos políticos que pouco tinham a ver com os temas abordados no Marco Civil. Os últimos meses de tramitação na Câmara do texto foram um exemplo claro disso. O resultado final é diferente do que saiu da consulta. Algumas modificações mais visíveis são a guarda de dados, o dispositivo sobre responsabilização derivada da exposição não autorizada de conteúdos com nudez ou atos sexuais, além da questão dos direitos autorais e a própria redação do artigo sobre neutralidade da rede.

 

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O Brasil apenas começou a experimentar a criação de projetos de lei com consultas através da internet com Marco Civil. Outros processos foram desenvolvidos depois, como a reforma da Lei de Direitos Autorais, a Lei Geral sobre Dados Pessoais e a revisão da Classificação Indicativa. O importante é manter o registro desses processos, de suas contribuições e ir aperfeiçoando a metodologia de sua aplicação.

Quem sabe, no futuro, projetos de lei que cheguem no Congresso a partir de consultas na internet não venham com um mecanismo que faz com que tudo o que o Congresso adicionar ou suprimir venha com marcas de revisão, garantindo que todos possam ter mais clareza sobre o trabalho dos deputados e senadores.

Há erros atualmente no texto que exigem algum conserto no Senado? Algum ajuste no Senado poderia sempre ser feito, mas existe também uma questão de estratégia sobre se valeria a pena corrigir algo aqui e ali e voltar o texto para a Câmara para um novo round e atrasar ainda mais a sua entrada em vigor. Me parece que a questão dos conteúdos íntimos oferece um tratamento especial que se diferencia dos demais e isso pode dar margem a inúmeras interpretações. E, de forma mais grave, a retenção de dados, sem que se tenha aprovada uma lei geral sobre dados pessoais preocupa bastante.

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Acha que o texto deixou brechas para interpretações diferentes? Inúmeras interpretações vão surgir, inclusive sobre o quanto novos modelos de negócio que fatalmente surgirão estarão em compatibilidade com o Marco Civil. Depois de cinco anos nesse processo, existe na verdade uma ansiedade em ver a lei em vigor e a partir dela começar a construir uma jurisprudência e uma aplicação que possa preservar o que há de mais essencial na internet.

Em uma última instância, do jeito que está, o Marco Civil gera um efeito curioso porque ele é ao mesmo tempo conservador, ao manter os valores de abertura que inspiraram a criação da própria internet, e revolucionário de outro, ao promover a inovação e a criatividade. Equilibrar esses dois extremos vai ser o maior desafio da lei quando estiver em vigor e o texto atual foi um passo muito importante para manter esse equilíbrio.

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