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Por dentro da rede

Opinião|O escambo de direitos

É fácil atribuir à internet coisas do mundo material. Não é ela que atropela pedestres

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Atualização:

“O uso da internet deve guiar-se pelos princípios de liberdade de expressão, de privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendo-os como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática”, reza o primeiro princípio do decálogo que o Conselho Gestor da Internet (CGI) divulgou em 2009. É uma declaração de direitos.

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Claro que direitos podem colidir (e colidem), mas há as colisões reais, que merecem extremo cuidado, porque levam a hierarquizar direitos, e aquelas definidas sem base sólida, artificiais, que podem servir como pretexto para supressão arbitrária de direitos.

Uma delas é a pseudo colisão entre “privacidade” e “segurança”. Não poucas vezes nos dizem que, para termos mais segurança, os garantidores deste privilégio precisam saber de mais dados sobre nós. Se esses “bem intencionados” souberem quem somos, onde estamos, o que maquinamos ou com quem conversamos, podem garantir-nos uma vida mais calma.

Como sempre, o diabo esconde-se nos detalhes. Um deles é que o conceito de “bem-intencionado” é móvel, e pode ser abjurado mais tarde. Quantos “bem-intencionados” conhecíamos que nos surpreenderam ao saltar o muro para o “outro lado”? Outro, mesmo admitindo que os “do bem” continuam firmemente sendo “do bem”, é crê-los perfeitos em suas ações, como no armazenamento dos preciosos dados que a eles confiamos...

Wannacry, o programa malicioso que criptografava os dados de suas vítimas e pedia resgate para liberá-los, ilustra esses detalhes. Alguém, hipoteticamente “do bem”, descobriu uma falha de segurança; por algum outro fator humano (demasiadamente humano...) essa “descoberta” saiu do controle dos que a conheciam e caiu no mundo impuro e imperfeito da internet. Bastou um defeito apenas conhecido pelo lado “luminoso da força” para que estivéssemos ainda mais inseguros do que estávamos.

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Vemos os mesmos, e mancos, argumentos sobre “nossa proteção” na rede serem reutilizados. Alguém deveria “poder ver” os dados que enviamos, mesmo que criptografados. Alguém deveria poder entender as mensagens que trocamos com outros. Defende-se, para nossa “proteção”, um ouvido ou olho geral, ubíquo, onipresente, que pudesse saber do que potencialmente nos aflige e ameaça. Uma tutela para todos, mas claro que para o “bem geral”. 

Imaginemos como exercício que todas as chaves das casas devessem ter uma cópia na central local da polícia. Ou que deveria ser obrigatória a instalação de microfones e câmaras nas residências, para “proteção dos residentes”. Ou que as paredes deveriam ser de vidro para que ninguém pudesse entrar sorrateiramente sem que fosse imediatamente flagrado. Seria esse um mundo melhor e mais seguro? Sinceramente, eu continuo muito cético quanto a esse tipo de solução tutelar.

Finalmente, é fácil atribuir à internet coisas do mundo material. Não é a internet que atropela pedestres com caminhões, explode clubes ou que esfaqueia transeuntes. Ao contrário, é a partir do que se acha aberto na rede que pode-se, muitas vezes, contribuir para a prevenção e identificação dos reais culpados. 

Parafraseando o dito de Benjamin Franklin sobre liberdade e segurança, parece-me que abrir mão da privacidade em nome de mais segurança é, na verdade, abrir mão de ambas. É ENGENHEIRO ELETRICISTA

Opinião por Demi Getschko
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