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Opinião|O mercado de almas

Qual seria hoje a cotação de almas, especialmente nos ambientes em redes, onde a verdade torna-se mais "flexível", e o hedonismo o individualismo experimentam inédita valorização?

Atualização:
O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde Foto: Divulgação

Valor de mercado é algo volátil e difícil de definir, especialmente para nós, leigos em economia. Nesta semana, por exemplo, o surto do vírus do momento derruba bolsas, estraga previsões, azeda os otimistas. Do outro lado do espelho, inteligência artificial representa a nova cornucópia de bondades e riqueza. Sua simples menção, de preferência acompanhada de "alguma-coisa 4.0", e outras expressões crípticas, bastará para desencorajar os raros incautos que se aventurariam em polemizar...

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Estamos entrando na quaresma (...acabou nosso carnaval / ninguém ouve cantar canções...). Lembrou-me que foi na Páscoa que o Dr. Fausto, no poema de Goethe, um cientista ávido de conhecimento como sói usualmente acontecer com eles, encontrou-se numa praça com um cão negro, depois transmudado em um misterioso ser de capa vermelha e sorriso torto, que lhe propõe um pacto. Há todo um prefácio disso, que envolve uma aposta entre Deus e o Diabo, nos moldes do que se passou com Jó no velho testamento, mas não trataremos aqui desses prolegômenos. Fausto pergunta ao misterioso visitante o nome. Ele desconversa e diz ser o "espírito que nega sempre tudo" trata-se pois do Tentador, que no poema tem o nome de Mefistófeles. O pacto, assinado com sangue, exigiu negociação, pois Fausto ambicionava muito: para si, todo o conhecimento possível e para o mundo uma sociedade justa e de fartura. Quando estivesse satisfeito com o resultado atingido ordenaria ao tempo: "Pare! Perpetue este momento inefável" e aí Mefistófeles ganharia definitivamente sua alma. Ou seja, o Demo pagaria um preço bastante elevado pela alma de Fausto.

O tema da barganha demoníaca aparece em muitas obras. Em O Mandarim, de Eça de Queiróz, Teodoro, simples escriturário cético, após ler um livro fantástico, recebe a visita de um senhor de preto e cartola que lhe propõe algo que estava no tal livro: se Teodoro tocasse uma pequena sineta à sua frente, um riquíssimo mandarim na China morreria instantaneamente, e sua fortuna viria para Teodoro. Convencido das vantagens, ele toca a sineta, recebe a fortuna e, pouco depois, arrepende-se. Avalia ter cometido um grande erro e tenta, sem sucesso, desfazer o pacto. A misteriosa figura de negro e cartola desaparece e sobra apenas um cão negro a farejar o lixo...

O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde, fala de um jovem vaidoso que, ao ser retratado numa bela pintura, lamenta-se que o retrato permanecerá sempre assim, enquanto ele envelhecerá. Propõe-se a vender a alma em troca de a pintura envelhecer ao invés do retratado. Uma perene juventude para Dorian, enquanto seu retrato degenera. Nestes três exemplos há uma nítida diminuição no valor perceptível de almas no mercado. Se para ganhar a alma de Fausto o diabo teve que conceder poderes e conhecimento vastos, a de Teodoro valeu riquezas, e a de Dorian, apenas o prazer narcisista de manter-se belo.

Qual seria hoje a cotação de almas, especialmente nos ambientes em redes, onde a verdade torna-se mais "flexível", e o hedonismo o individualismo experimentam inédita valorização? Quanto o Pai da Mentira teria que pagar pela nossa subserviência? Afinal todos queremos vídeos monetizados, alguns milhares de likes e ter muitos seguidores pelo mundo (quem sabe até algum moderno mandarim chinês entre eles...). Qual seria a barganha aceitável pelo nosso caráter ou ética? Ou, pior ainda, qual seria a definição de ética que vale? Alerta!

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Opinião por Demi Getschko
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