
Pedro Doria
O romantismo do Vale acabou
A partir de agora, das cinco grandes, só duas são tocadas por seus fundadores — Amazon e Facebook. Google, Apple e Microsoft são grandes corporações com gestão profissional.
05/12/2019 | 18h05
Por Pedro Doria - O Estado de S. Paulo
Sundar Pichai, presidente executivo do Google e, agora, também da holding Alphabet
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Há coisa de três semanas, Sundar Pichai, CEO do Google, enviou um e-mail para todos os funcionários. Informava que, a partir daquele ponto, suspenderia as “TGIF”. Poucas mudanças foram tão sentidas dentro da companhia. Fora da empresa, a sigla “TGIF” pode não querer dizer nada. Dentro, era uma tradição, um elemento marcante do ethos: a cada duas semanas, Pichai se punha no centro de um dos muitos restaurantes no campus Googleplex, ouvia perguntas dos funcionários e as respondia com franqueza. Qualquer pergunta valia. As respostas vinham. Na quarta-feira, Larry Page e Sergey Brin, fundadores do Google, deixaram suas funções executivas e Pichai agora está no comando da holding Alphabet, que inclui o Google e todos os outros negócios. Pois a morte das TGIF é mais representativa do fim de uma era do que a mudança executiva.
O Vale do Silício está em meio a um processo doloroso. Manda no mundo. Está no centro da maior briga geopolítica — aquela entre os EUA e a China — desde o colapso da União Soviética. Sua influência no processo democrático é frontalmente questionada. A tecnologia que desenvolve desmonta um sem número de indústrias tradicionais, gera desemprego, chacoalha o mundo. Os produtos do Vale do Silício estão nas mãos de todos nós e não conseguimos viver sem eles. A pressão não é pequena.
Há cinquenta anos, o Vale era uma grande plantação de laranjas cheia de hippies. Há quarenta vivia um boom criativo no qual jovens, jovens mesmo, de vinte e poucos anos, viravam milionários em suas garagens, produzindo os primeiros computadores. Há apenas trinta anos, nas escolas públicas do Vale ainda predominava a classe média. Elas nada tinham de muito distinto de quaisquer outras escolas californianas, com crianças brancas, negras e hispânicas convivendo. Foi só nos últimos vinte anos que a demografia começou realmente a mudar, junto com o dinheiro da internet que expulsou a classe média da região. A área ficou cara demais e os milionários viraram bilionários. Saem negros e hispânicos, entram indianos, japoneses e chineses. Os Fords somem, substituídos por Teslas.
O Vale do Silício não produz mais startups. Nenhuma startup consegue pagar o salário de um engenheiro por lá. Não há mais garagens.
Em sua mensagem para os funcionários, Pichai explicou que não dava mais para fazer as sessões de perguntas e respostas francas porque tudo vazava para a imprensa. O aconchego da empresa multicolorida, com restaurantes gratuitos e cujo mote um dia foi ‘não faça o mal’ ainda está lá. Só, talvez, sem a sensação de aconchego. É uma grande corporação, com inúmeras tensões, questionamento de práticas de recursos humanos, e não poucas críticas internas sobre a atuação da companhia no mundo.
O Google continua revolucionário e, provavelmente, é uma das maiores concentrações de talento, inteligência e criatividade por metro quadrado no planeta. Mas, neste 2019, ano em que completa 21 anos, deixa os últimos traços da startup que um dia foi. A cultura de abertura se tornou inviável. É uma grande corporação com interesses próprios e que se prepara para, talvez, enfrentar um processo antitruste.
Uma das coisas que o Vale ainda tinha era uma certa mística que remete aos tempos de Thomas Edison e Alexander Graham Bell — o criador no comando da empresa que fez nascer. Quase a personificação dela, uma logomarca ambulante. Esta era está chegando ao fim. A partir de agora, das cinco grandes, só duas são tocadas por seus fundadores — Amazon e Facebook. Google, Apple e Microsoft são grandes corporações com gestão profissional. Impessoais.
O romantismo acabou.
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