Os cada vez mais longínquos sons da tecnologia analógica

Os sons de linha ocupada, discos riscados, fitas rebobinadas desapareceram; quais as referências do digital?

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Por Redação Link
Atualização:

Sempre gostei de um musical chamado Company, um espetáculo da Broadway criado por Stephen Sondheim que estreou em 1970. A trama envolve um morador de Manhattan de 35 anos, ainda solteiro apesar de ter casais como melhores amigos. A ambientação, a linguagem e a trilha sonora eram ultrachiques, ultramodernas, ultraurbanas. Na verdade, tão urbanas e modernas que a primeira coisa que ouvimos quando o espetáculo começa é o toque de linha telefônica ocupada — na época, este barulho representava o símbolo tecnológico máximo de um estilo de vida corrido e pleno.

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Após algumas repetições daquele insistente bipe de uma nota só, a abertura musical começa a ganhar força acompanhando este ritmo. O toque de linha ocupada se torna o tema musical de todo o número de abertura.

Mas, quando assisti a uma nova montagem do espetáculo, em 2006, aquele som não estava mais ali. Posteriormente, Sondheim me contou que ninguém mais sabe o significado do toque de linha ocupada.

Tive de admitir que ele tinha razão. Quando foi a última vez que você ouviu este toque? Hoje em dia, as mensagens de voz (ou o simples envio de mensagens de textos) praticamente eliminaram o sinal de linha ocupada. Ainda assim, isto fez com que o número de abertura de Company fosse privado da ideia original — muito boa, por sinal — que o inspirou!

Temos também o caso do som de disco riscado, ainda usado com frequência em propagandas e cenas cômicas para indicar que o raciocínio de alguém perdeu o rumo. Não é estranho que ainda usemos este barulho? Em sua maioria, o público dos últimos 20 anos nunca chegou a ouvir este som na vida real! (Num segmento transmitido pela National Public Radio em 2008, o apresentador perguntou a alguns adolescentes se estes seriam capazes de identificar o ruído. Eles não conseguiram. “Não faço ideia… Sei que já vi isto na TV.”)

E há também os barulhos embaralhados que indicam uma gravação sendo avançada ou rebobinada — numa FITA. Como este efeito pode ser reintroduzido nos filmes, agora que os formatos digitais de vídeo privam os produtores deste som tão usado como referência pelo público?

E quanto à gritaria dos modems das conexões discadas? É claro que estamos todos satisfeitos por termos conexões sempre ativas com a internet. Mas não havia algo de gratificante, algo de compreensível naquele procedimento de pergunta-e-resposta cheio de estática entre nossos computadores e a nave-mãe?

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Outra vítima desta perda é o sinal de linha telefônica. Os celulares não têm este sinal; somente as linhas fixas, que também estão desaparecendo. E, na ausência do sinal de linha, como os produtores de cinema farão para indicar que um personagem desligou o telefone enquanto falava com outro? (Por mais que esta caracterização fosse irreal, para começo de conversa.)

O engraçado é que estamos substituindo tais sons principalmente por… ruído nenhum! Que barulho faz uma conexão de banda larga? Qual é o som que faz um CD ao ser rebobinado?

A questão, é claro, é que o avanço da tecnologia digital está fazendo com que percamos o referencial dos ruídos das tecnologias analógicas. E, às vezes, esta perda pode ser substancial. As caixas registradoras não fazem mais “ca-ching”. Mas ainda DIZEMOS “ca-ching” quando nos referimos ao dinheiro, e aí reside a prova — às vezes, nossa cultura simplesmente pede uma certa referência, uma certa deixa auditiva que costumava ter um significado real.

Na verdade, de tempos em tempos encontramos um caso em que a antiga referência auditiva analógica é tão importante que o fabricante acaba instalando uma versão deste som no novo modelo digital e silencioso de um aparelho porque o ruído serve a um propósito. As câmeras digitais, por exemplo, reproduzem uma versão digitalizada do barulho de um obturador analógico. Testei recentemente uma motocicleta elétrica que toca uma gravação do motor de uma motocicleta movida a gasolina, para evitar que o piloto atropele os cidadãos desavisados que estiverem na mesma rua.

Não quero fazer o papel de Andy Rooney e me queixar do ritmo dos avanços tecnológicos. Alguma coisa sempre se perde quando mudamos de um formato para outro; simplesmente é assim que funciona.

Ao mesmo tempo, gostaria de homenagear estes ruídos perdidos de discos riscados, linhas ocupadas, fitas rebobinadas e caixas que faziam ca-ching. A eles, ofereço um minuto de silêncio.

* Texto originalmente publicado em 03/03/2011.

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