EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Por dentro da rede

Opinião|Outros tempos, outros ventos

Para o bem ou para o mal, vivemos tempos interessantíssimos

PUBLICIDADE

Atualização:
Abertura da IGF, em Paris Foto: Ludovic Marin/Reuters

Jon Postel, pioneiro da internet e gestor dos recursos coordenados da rede (nomes de domínio e números IP), usou certa vez, em reunião do IETF (força-tarefa de engenharia da rede), uma camiseta onde se lia “vivemos em tempos interessantes”. Se ele estava sendo óbvio, ou era na acepção de Nelson Rodrigues: “apenas sábios, profetas e gênios enxergam o óbvio”. A coisa é, entretanto, mais capciosa do que parece. Na cultura chinesa… repito como ouvi dizer) “tempos interessantes” são característicos de mudanças, de crises. São tempos de pouca paz, muita turbulência e inquietudes. Desejar a alguém que “viva tempos interessantes” estaria longe de ser um bom augúrio e, sim, quase um esconjuro. Afinal tempos amenos e de enraizamento são “desinteressantes”. Para o bem ou para o mal, vivemos tempos interessantíssimos. 

PUBLICIDADE

Há duas semana houve em Paris o 10.0 fórum de governança da internet (IGF). Na abertura, discurso do português António Guterres, secretário geral das Nações Unidas, seguido pelo do presidente da França, país hospedeiro, Emmanuel Macron, ambos disponíveis na íntegra na rede a quem quiser aprofundar-se. Limito-me a registrar que Macron discorreu por mais de hora, e abordou temas improváveis a um presidente, até pela abundância nos detalhes técnicos. Não tentarei analisar o cerne do discurso mas, de forma superficial, pareceu-me claro que ele se propõe a encabeçar uma “terceira linha” na rede, sua alternativa ao embate “lado norte-americano” versus “lado chinês”. Há, é claro, motivação pessoal e busca de espaço, mas penso importante não cairmos em generalizações fáceis, que parecem atender às angústias desses “tempos interessantes”. Pelas tantas, ele propõe a busca do que seria uma “internet higienizada”, e uma nova abordagem de regulação, partindo da base, diversa da tradicional que parte do topo. Em tema de internet, devemos ter cuidado com ambas as abordagens, seja para não cair em censura central, seja para não dar um poder desmesurado a quem apenas é uma aplicação privada sobre a rede.

O desse raciocínio é perder-se de vista a floresta ao nos concentrarmos nas árvores. Há que se ter clara ideia de como conceituar a internet, separando-a das aplicações que nela nascem (e morrem) o tempo todo. A rede básica é o conjunto de protocolos e equipamentos que nos permite ir a qualquer destino, sem restrições. Centra-se aí o conceito de neutralidade e a luta para manter a rede aberta, universal e única. Quase equivale ao direito de ir e vir. As “ruas” da internet transitáveis igualmente por todos, mesmo que a “casa” em cuja porta batemos não nos dê acesso. Ou nos cobre pelo acesso. Aplicações criadas rede não se confundem com o caminho até elas, e a rede permanece, mesmo que o conjunto de suas aplicações mude ao sabor das preferências dos usuários. Como no coliseu romano, nosso “clique” é nosso voto e ele decide quem terá sobrevida. Exemplos não faltam: o que é feito do “MySpace”, do “Orkut”, do “Second Life”, do “Pokémon”...? Mudam os ventos, mas a rede deve seguir adiante.

Respeitando as regras básicas da internet, seus protocolos aceitos por consenso, estamos livres para criar novos artefatos e submetê-los ao crivo dos potenciais usuários. A rede, este ecossistema espantoso e livre, deve permanecer íntegra.

Opinião por Demi Getschko
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.