'Precisamos de uma primavera cibernética'

Para ativista e consultor sobre tecnologias livres, o Prism é uma evidência de que vivemos uma ditadura no mundo virtual

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Por Ligia Aguilhar
Atualização:

Para ativista e consultor sobre tecnologias livres, o PRISM é uma evidência de que vivemos uma ditadura no mundo virtual 

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PORTO ALEGRE – “Não é só pelos R$ 0,20. É pelo software livre”, brincou o coordenador do Fórum Internacional do Software Livre (Fisl 14), Ricardo Fritsch, durante a abertura do evento na quarta-feira, 3. A piada com a frase repetida a exaustão durante os protestos recentes por todo o País tem seu fundo de verdade. Para os ativistas do software livre, que defendem a liberdade na internet, a revelação de um escândalo como o programa secreto americano de espionagem PRISM é a evidência que faltava para que usuários do mundo todo repensem o uso de sistemas que monitoram dados pessoais.

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É essa a principal bandeira de Anahuac de Paula Gil, ativista, consultor sobre tecnologias livres e diretor das empresa Software Público Com Br e KyaHosting que, na quinta-feira, 4, comandou no Fisl o painel “Jogaram PRISM no ventilador, e agora?”. Para ele, os usuários da web estão expostos à ditadura de grandes corporações de tecnologia, como a Microsoft, Google e o Facebook,e precisam fazer uma espécie de ‘primavera cibernética’ para garantir a democracia na rede.

Algo que não teria acontecido até hoje porque a maioria não sente ainfluência direta desse monitoramento e não percebe o quanto está exposto. “É como se a gente estivesse falando de um supernova que explodiu. Para os astrônomos é algo fantástico, mas para nós, meros mortais, isso não faz diferença, porque minha vida cotidiana continua exatamente igual”, diz. “Não é como no aumento do ônibus, no qual você sente os R$ 0,20 no bolso.”

Paula Gil propõe a migração dos usuários das redes que estão expostas a esse monitoramento para as chamadas redes federadas (que são descentralizadas e, portanto, de difícil monitoramento) disponíveis na web e que garantem o acesso aos mesmos recursos sem ameaçar a privacidade, como a Diaspora, o Linux e o Riseup.

Em um bate-papo com o Link, ele explicou como funcionam essas redes e como o PRISMafeta o usuário comum sem que ele perceba.

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O que são redes federadas? Por que o uso delas é uma alternativa para manutenção da privacidade?Essas redes funcionam de maneira bem descentralizada, de forma que se uma hecatombe natural varrer o Brasil do mapa, elas continuam funcionando no resto do mundo. O próprio conceito de internet é assim. A internet não depende de um servidor, de uma empresa ou de um governo. É um conjunto de dados particulares, públicos e civis que trabalham em conjunto pra manter a rede funcionando. Redes como o Google, Facebook, Twitter e Skype funcionam como um único ponto de informações. Então o monitoramento desses dados é centralizado. É uma única base de dados, basta monitorar uma só. Nas federadas não. Eu tenho o meu próprio servidor de rede social, você tem o seu e esses servidores conversam entre si formando uma grande rede social.

O funcionamento é similar ao de um torrent? Sim. Assim como no torrent, todo mundo é servidor e cliente ao mesmo tempo nas redes federadas. A vantagem concreta é que assim como no torrent não dá para monitorar. Porque se eu receber uma ordem para monitorar o meu servidor, é só o meu. Há outros milhões. Não dá pra monitorar todo mundo. Se o meu servidor cair, eu simplesmente arranjo outro. A pergunta é: se o Facebook cancelar a sua conta, o que ocorreu com frequêncianas movimentações sociais recentes, você se cadastra em qual outro servidor do Facebook? Não tem outro. Esse é o ponto. E quando você transporta isso para algo do dia a dia então, como as ferramentas do Google, que concentram documentos, planilhas, e-mails, calendário, contatos, telefones, vídeos familiares, tudo em um lugar só… Por que isso é aceitável? Por que colocar a sua vida na mão de alguém que pode desligar a sua existência? A ideia da rede federada é que esse tipo de abuso não aconteça. Sou totalmente a favor das redes sociais. É uma maneira democrática e distribuída de produção e disseminação de conhecimento, mas esse poder não pode estar na mão de um só. Isso não é democracia. É ditadura cibernética. E por algum motivo todo mundo acha isso fantástico.

Precisamos de uma espécie de primavera cibernética? Sim. Há uma falta de percepção sobre o que está acontecendo. O monitoramento na redeé ativo, mas não interfere na sua vida cotidiana, então você não sente o que está acontecendo. É como se a gente estivesse falando de um supernova que explodiu. Para os astrônomos é algo fantástico, mas para nós, meros mortais, isso não faz diferença, minha vida cotidiana continua exatamente igual. Então o escândalo do PRISM só é percebido nas esferas que entendem a gravidade do que está acontecendo, para o cidadão mediano não tem implicação. Ele estava usando seu e-mail ontem, continua hoje, que diferença isso faz? A reação a isso é muito leve. As pessoas estão anestesiadas. A ideia de uma primavera cibernética é ótima. Precisamos disso, de um renascimento cibernético. Nós confiamos cegamente no Google, Facebook, Skype.

Qual o impacto do PRISM na nossa vida cotidiana? Como os brasileiros estão sendo monitorados?A primeira coisa é entender que o PRISM não é só nos Estados Unidos. O PRISM é uma iniciativa do governo norte-americano para monitoramento da internet toda, com mais ênfase dentro dos Estados Unidos, porque os principais provedores de soluções na internet, como o Google, Facebook, Skype e Apple são norte- americanos. Mas o fato de você apenas usar essas ferramentas já o encaixa em um processo de monitoramento. No que isso implica no cotidiano é em inteligência militar e metodológica. Ninguém gosta de ser um produto da exploração de ninguém. Não é inteligente a gente fornecer gratuitamente informações de mercado a empresas estrangeiras. Em termos práticos esse monitoramento pode não mudar nada para você, mas provavelmente as informações que você está fornecendo de graça, somadas às informações que seu vizinho fornece de graça, com as que todo mundo fornece de graça, vai determinar se amanhã você vai tomar Coca-Cola ou não, se a nossa Copa do Mundo vai ser a melhor ou não, se a gente aceita mais pornografia ou violência… As pessoas deveriam prezar pela sua liberdade como prezam pela comida que comem, a água que bebem, pela preservação dos animais.

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Você disse que o problema da privacidade não tem a ver apenas como governo, mas é principalmente de responsabilidade dasempresas de tecnologia. Até que ponto essas empresas têm autonomia diante de uma decisão que vem da Casa Branca? A gente precisa entender que essas empresas têm um único objetivo que é ganhar dinheiro.Elas criaram seus negócios em cima do monitoramento, que foi algo feito antes dessa decisão do governo (de criar o PRISM). Onegócio de vender propaganda direcionada vem antes disso tudo. O fato é que para que esse monitoramento se torne aceitável, tem um princípio ético, que é: eu não vou analisar o seu conteúdo para saber se ele é bom ou ruim, eu vou avaliar qual a sua tendência para te mostrar uma propaganda direcionada. Isso soa menos grave do que deveria ser, o problema é que os governos percebem que esse monitoramento pode ser muito útil para traçar não apenas perfil econômico, mas socioeconômico, sociopolítico. O que essas empresas deveriam ter feito era ter aberto o problema ao público e explicado que receberam uma determinação do governo norte-americano de que a partir de tal dia todos seriam monitorados. E ter dado opção para que o público pudesse optar pelo que queria.

Você propõe boicote a essas empresas. Como funcionaria isso?A proposta é que a gente faça uma troca de ferramentas. As mais populares se tornaram grandes por investir em mídia, propaganda, ferramentas para conquista do mercado, por atender a um interesse mercadológico. E é por isso que elas cedem às pressões do governo para fazer o monitoramento. A minha convocação é especialmente para que os ativistas usem ferramentas tecnológicas que garantam a privacidade. Elas existem eestão disponíveis na internet gratuitamente. A minha ideia é que a gente faça um movimento ordenado de evasão ou abandono dessas redes sociais para as federadas e livres. Mas aí você me diz que o Google é de graça e pergunta onde é que você vai fazer outro e-mail de graça? Eu te digo para pagar. Porque se você não paga a ferramenta você é o produto. Não é concebível que você não esteja disposto a pagar R$ 3 por mês para ter mais privacidade.

E como quebrar o ciclo da conveniência. já que essas redes também promovem muitas facilidades aos usuários, até mesmo pelo tamanho delas? A maioria das pessoas não vai conseguir sentir o problema na pele, porque está na média e não causa problema, então a maioria não será afetada. A minha convocatória é para aqueles que entendem o perigo do que está acontecendo se juntarem para quem sabe a gente criar uma massa crítica sobre o que estão fazendo.

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Os ativistas estão acomodados? Absolutamente. Este é o grande drama. Eu posso estabelecer paralelo com outros movimentos que também demoraram para formar massa crítica, como os ecologistas, que levaram mais de 30 anos para criar consciência ecológica e não desistiram. O movimento Software Livre também conseguiu fazer o debate sobre Linux e GNU soar normal. Hoje ninguém discute se esses sistemas são bons ou não. A pergunta é se você vai ou não adotar. Ninguém discute mais se você vai jogar lixo no chão, mas se você vai colocar lixeiras suficientes. Não se discute mais se transporte público é algo positivo. Hoje se discute a qualidade dele. Eu espero que a gente consiga através do ativismo levar essa consciência.

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