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Por dentro da rede

Opinião|Queimando bits

“451” é código que informará que o conteúdo buscado está inacessível por ordem judicial

Atualização:

Em 1953, o ano em que nasci, Ray Bradbury, um cultuado escritor de ficção científica, terminou Fahrenheit 451, seu livro mais conhecido. É a 451 graus Fahrenheit de temperatura que o papel pega fogo. Bradbury trata de uma sociedade em que a “felicidade” é conseguida pela proibição de leitura de livros. Sem a influência “nefasta” dos livros – que fazem pensar, sentir, chorar – os habitantes se divertem participando de “famílias virtuais”, compostas por inúmeros “primos” que, a partir de monitores de TV, trazem diversão anódina e a sensação de pertencimento. Para completar o quadro há, é lógico, uso intenso de pílulas estimulantes e soporíferos. Montag, a personagem principal, é “bombeiro” numa época em que sua a função não é mais apagar chamas em casas incendiadas mas, ao contrário, de procurar (e queimar) livros dos que, desafiando a lei, continuam a guardar exemplares para leitura. Se Mildred, mulher de Montag, está perfeitamente adaptada ao modo de vida, Montag começa a se interessar por aquilo que queima, e tem crescente inquietação e dúvidas sobre o que seria “ser feliz”. Anos antes, em “Admirável Mundo Novo” (Huxley) livros eram irrelevantes por “inúteis”, e em “1984” (Orwell) são proibidos por serem “nocivos”. Fahrenheit 451 consegue juntar essas duas visões e, de quebra, trazer uma dura sensação de profecia realizada.

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Ao tema! Todos já recebemos alguma vez, ao consultar um sítio na web, o detestável erro 404 (http) “não encontrado”. É parte de uma família de mensagens de erro (de 400 a 499) associadas ao protocolo de transferência de hipertexto (http). Nem todos os números do segmento estão em uso e, recentemente, mais um foi definido: o 451, significando “conteúdo indisponível por razões legais”. Com o aumento de pedidos de remoção de conteúdo por órgãos de justiça de muitos países, achou-se que valia a pena discriminar o motivo da indisponibilidade. O RFC 7225 define “451” como o código que informará que o conteúdo buscado está inacessível por ordem judicial. De forma inteligente e algo matreira, o autor do RFC escolheu usar 451 e, explicitamente, agradece a Bradbury pela inspiração...Para o fim de transparência, O RFC 7225 especifica também que deve ser adicionada informação que indique o contexto, ou aponte à ordem que levou à exclusão daquele material. Nem sempre, entretanto, esses dados adicionais são providos e o usuário acaba sabendo, apenas, que “não é possível aceder” ao que ele queria...

Há certamente razões sólidas que justificariam a remoção de algo da rede. Mas sempre resta um travo, amargo, que associa eliminação de um conteúdo com a memória de ações indignas e deploráveis, como as que ocorreram na Segunda Guerra e serviram de inspiração para Bradbury escrever sobre queima de livros. Se, por um lado, bits não pegam fogo mas podem ser facilmente apagados, buscando-se de boa fé eliminar conteúdo nocivo da rede e torná-la mais segura, por outro, e especialmente no caso de abusos em regimes menos abertos, pode-se estar pavimentando a estrada da censura e da discriminação. Em 1966 o celebrado diretor de cinema François Truffaut levou, algo higienizadamente, “Fahrenheit 451” às telas. Vale a pena rever.

Opinião por Demi Getschko
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