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Reação contra o Vale

A utopia digital parece estar cedendo lugar a um “climão” de agressividade

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Ouvi o comentário esta semana. Veio no meio de uma conversa informal, com um executivo em alta posição duma multinacional de tecnologia. “Acho que está para vir uma reação contra o Vale do Silício”, disse. “A popularidade vai cair.” Embora não seja de lá, ele mora no Vale há anos, e conhece o clima de estudado otimismo típico daquele norte-californiano. Algo, sugere, está mudando no ar.

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E está mesmo.

Em outubro, o site Verge publicou uma extensa pesquisa de opinião realizada em parceria com a Reticle Research. A percepção das grandes empresas digitais pelos americanos está começando a mudar. E alguns truísmos estão ruindo. No item número de pessoas que diz gostar muito de usar seus produtos, por exemplo, a Apple teve a menor nota dentre as cinco grandes, que incluem também Amazon, Google, Facebook e Microsoft.

Este é um problema. Afinal, todo o marketing da Apple é baseado em empatia, na humanização dos aparelhos que faz. Se todas as outras têm produtos mais agradáveis de usar é porque a Apple se perdeu feio. Não está sozinha. Mais pessoas dizem não confiar no Facebook do que nas outras quatro. Isso apesar de o Facebook ser, também, a empresa cujo produto todos os usuários dizem ter mais dificuldades de se imaginar sem.

Pois é. Ninguém se imagina sem o Facebook. E ninguém confia no Facebook. Esta não é uma boa posição de se estar. É quase como dizer que as pessoas usam seu produto por vício. Como se ele lhes fizesse mal, mas não conseguem largá-lo.

O Facebook sabe disso. As mudanças que tem feito em seu algoritmo, pelas quais tenta mostrar mais fotos de gente conhecida e comentários de amigos ao mesmo tempo em que esconde notícias, tem esse objetivo. O noticiário, no mundo, tem irritado. Todos se sentem compelidos a participar da discussão agressivamente. A rede social tenta melhorar o clima.

O problema é que a lógica do algoritmo é uma armadilha. Quanto mais ele tenta mostrar só o que queremos ler, menos tolerantes ficamos com opiniões contrárias. Quanto mais incentiva a postarmos uma vida de felicidade fingida, mais nos ressentimos da felicidade aparente dos outros.

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Certa vez, Pierre Omidyar, fundador da eBay, comentou irônico: “Vamos construir um banco de dados de informação muito pessoal de todo mundo para vender anúncios altamente direcionados sem qualquer possibilidade de escrutínio público. O que pode dar errado?” Pois é.

Nenhum resultado é mais impressionante, porém, do que os da Amazon. A empresa é vista como a mais confiável e, sua marca, como a mais querida dentre as cinco pelos americanos. Quem diria. Perante Apple, Google, Facebook e Microsoft, todos preferem uma grande varejista. Pior: de todas as cinco, é aquela com maior vocação monopolista, a que ameaça um número maior de empregos noutras indústrias e a única que tem fama de ser péssima empregadora, com inúmeras queixas de abuso moral.

Bem: há uma diferença entre a Amazon e as outras. Seu marketing é o mais sincero. Ela cumpre suas promessas para os consumidores, entregando rápido o que vende, sugerindo produtos que realmente interessam e, com frequência, oferecendo os melhores preços. A Amazon não é ambígua. Em relação às outras, cada vez mais, ficamos com o pé atrás. Sempre parecem ter outras intenções.

E num mundo de fake news, polarização política, selfies fingidos e apreensão pelas mudanças econômicas promovidas pela disrupção, o clima de desconfiança só aumenta. A utopia digital parece estar cedendo lugar a um “climão” de agressividade.

Sim, pode vir aí uma reação.

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