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Jornalista, escritor e palestrante. Escreve às quintas

Opinião|Reféns das narrativas

O digital cria narrativas longas, sequenciais, que não têm fim: Pois é como acompanhamos a vida de nossos amigos e como informamos nossas famílias no Facebook, Instagram ou no WhatsApp

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A palavra do ano que passou, assim como deste que entra, é narrativa. Não se trata de uma afirmação original. Mas, nas redes como nos jornais, vez por outra alguém implica com ‘narrativa’, como se fosse algum termo da moda, um conceito frágil, um mero clichê inventado por publicitários. Não. Com a digitalização da cultura, a maneira como nos informamos mudou. Entendemos a transformação se compreendermos como funcionam narrativas.

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Séries estão substituindo Hollywood. Pós internet com banda larga ligada à TV da sala, séries viraram um bicho muito diferente do que jamais foram. A alta resolução e as telas retangulares obrigaram um tipo de investimento em qualidade de cenários, figurinos e mesmo interpretação dos atores que não era típico da televisão. Vem do cinema. E o fato de a rede alimentar esta tela permite assistir por demanda, a hora que se quer. Daí: binge watching. Assistir a um episódio depois do outro. Isso exige qualidade de roteiro, personagens mais complexas e uma trama sofisticada. Do tipo que existia em literatura. Séries juntam a qualidade visual do cinema com a complexidade narrativa de livros grandes.

O cinema não acabou. Mas mudou um tanto. O que faz dinheiro não são tanto as superproduções isoladas mas, sim, alguns nichos. Superheróis, por exemplo. Ou sagas como Guerra nas Estrelas. Filmes que precisam ser espetáculos visuais que justifiquem a tela grande — e, claro, com um pacote de personagens conhecidas. Não é à toa que a Disney se tornou o maior estúdio que jamais existiu — além do monopólio com o cinema de crianças, tem Marvel e Lucasfilm. E, é claro, os filmes são também serializados. Temos o um, o dois, o três, o próximo. Com leitura de fôlego é diferente. Mais e mais estudos acadêmicos indicam que mesmo gente que foi por muito tempo leitora tem tido dificuldades de manter a atenção nos livros longos.

Estamos sendo treinados. Não é de propósito. É só o resultado da tecnologia. Quando o velho Marshall McLuhan dizia que a Mídia é a Mensagem, era disso que falava.A tecnologia que usamos para nos informar molda a informação. O digital cria narrativas longas, sequenciais, que não têm fim.

Pois é como acompanhamos a vida de nossos amigos e como informamos nossas famílias. Facebook, Instagram, WhatsApp. Constantemente atualizando a todos com pequenos vídeos, áudios, fotografias e algum pouco texto. O que comemos, para onde viajamos. Quando alguém adoece, cada passo da doença à recuperação. Cada dia do crescer de nossos filhos — da gravidez ao nasceu, comeu, andou, falou, leu, fez um gol. Foi ao Maracanã ou Pacaembu. Dançou balé. Os capítulos são constantemente atualizados. Serializados numa narrativa linear consistente e ininterrupta que nos alimenta diariamente.

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Naturalmente, assim como em uma série, vez por outra é preciso salpicar nossas vidas com algum grande dilema. Não é à toa que o noticiário político vem sendo consumido com tanta ênfase: é preciso ter posição. E é preciso manifestar o que se pensa.

Mas, aí, entra a armadilha. Quem vive de política compreende narrativas. Assim, as constrói. Os fatos são manipulados e reformatados para que se encaixem numa narrativa maior. Não vivem mais por si: são cuidadosamente selecionados para construir uma versão. Uns tantos brasileiros realmente acreditam que houve um golpe de Estado. Outros tantos creem que metade dos liberais são, na verdade, algo que batizaram socialistas fabianos.

Só estamos enxergando as narrativas. Nos esquecemos dos fatos.

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