Reunião da UIT termina sem definições

Texto pouco específico gerou divergência e não obteve apoio de bloco de países, incluindo os EUA; regras só valerão em 2015

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Por Murilo Roncolato
Atualização:

Texto pouco específico gerou divergência e não obteve apoio de bloco de países, incluindo os EUA; regras só valerão em 2015

 

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SÃO PAULO – A Conferência Mundial de Telecomunicações Internacionais (WCIT) encerrou os trabalhos nesta sexta-feira, 14, após duas semanas de discussões sobre a forma que tomariam as leis que regem o setor, atualizada pela última vez há 24 anos. Dos 154 Estados membros presentes, pelo menos 17 se privaram de assinar o documento final (veja na íntegra) por não concordar com o texto ou por preferir aguardar discussões mais amplas em seus respectivos países.

À frente deste bloco estão os Estados Unidos, que não gostaram de ver a União Internacional das Telecomunicações (UIT) pulando a cerca que separa as telecomunicações (infraestrutura) dos serviços que nela operam (a web e seu conteúdo), e nem de ler em uma das resoluções anexadas ao documento principal a afirmação de que todos os países deveriam ter direitos iguais sobre a governança da internet – hoje nas mãos de instituições “multistakeholder” (de composição socialmente variada) como o Icann, o IETF e o W3C.

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Durante a reunião, os EUA fizeram o seguinte anúncio: “É com profundo pesar e com a sensação de oportunidades perdidas que eu tenho que anunciar que os Estados Unidos comunicam ser incapazes de assinar o acordo na sua forma atual (…) A internet deu ao mundo uma economia inimaginável e benefícios sociais durante os últimos 24 anos. Tudo sem a regulação da ONU. Francamente, nós não podemos apoiar um Tratado da UIT que seja incompatível com o modelo ‘multiskateholder’ de governança da internet.”

Os pontos de divergência foram vários. O chefe da delegação americana pontua os principais:

Reconhecimento. Segundo Terry Kramer, o desentendimento sobre o uso de “recognized operating agencies” (ROA, ou agência operacional reconhecida) e apenas “operating agency” (OA) foi “a mais fundamental” da reunião. Isso porque segundo a UIT, ROAs são agências autorizadas pelo chefe do Estado a operar serviços de telecomunicação no país; e OAs se referem a “qualquer indivíduo, empresa, corporação ou agência governamental que opere uma estrutura de telecomunicações voltada para um serviço de telecomunicações internacionais”. Isso, segundo a pesquisadora da FGV-RJ, Joana Varon, abrange qualquer agência ou empresa, como Google e Skype, por exemplo.

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O receio é que com o uso da terminologia mais irrestrita, seria mais fácil para os países controlarem a internet no seu país e exercer censura sobre o conteúdo trafegado.

Spam e segurança. Há dois pequenos artigos no texto final que discorre sobre o spam (Unsolicited bulk electronic communications) e segurança (Security and robustness of networks). Aparentemente inofensivos. Os Estados Unidos argumentam, porém, que artigos sobre cibersegurança e spam representam uma ameaça, por serem possivelmente um primeiro passo para que a UIT comece a deliberar sobre questões restritas à internet nas próximas conferências.

“Spam é uma forma de conteúdo e regulá-lo inevitavelmente abre a porta para que se regule outras formas de conteúdo, incluindo temas políticos e culturais”, disse Kramer.

Governança. Na terceira resolução apensada ao documento, lê-se:

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“Todos os governos deveriam ter papel e responsabilidade iguais sobre a governança internacional da internet e para garantir a estabilidade, segurança e continuidade da internet atual e seu desenvolvimento futuro, e da futura internet e a necessidade de desenvolver políticas públicas pelos governos em consulta com todas as partes interessadas é também reconhecida;”

A ideia de documentar a vontade da maioria (posto que, em teoria, a resolução foi aprovada em plenário) sobre a abertura da governança da internet aos Estados – criticada atualmente por ficar restrita a instituições indiretamente geridas pelos EUA – partiu do Brasil. Em entrevista ao Link, o ministro das Comunicações criticou o modelo atual de governança e disse ter interesse em uma maior participação dos demais países sobre a gestão da web.

“Achamos excessivamente americano. O Icann não é essencialmente governamental, mas tem muita gente de lá, inclusive da Defesa. É muito importante para eles, mas também é para nós. E temos que poder dar ‘pitaco’ nessas questões”, disse.

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O País agiu como um grande articulador na WCIT, segundo o ministro. Segundo Paulo Bernardo, “o Brasil conseguiu fazer uma ponte. Não seguimos o extremo de quem queria o controle da rede ou restringir a liberdade de expressão, mas também não ficamos do lado de quem não queria mudar nada”, referindo-se a China e Rússia, primeiramente, e Estados Unidos e países europeus. No meio do fogo, o Brasil ia traçando alianças, conforme convinha, com países árabes, africanos e do sudoeste asiático.

 

O Brasil obteve a aprovação de resoluções restritas às telecomunicações, mas que mesmo assim enfrentaram resistência. Foram elas a maior transparência e redução das taxas de roaming internacional e o aumento de pontos internacionais de tráfego na América Latina, o que resultaria em menos custo para ligações internacionais.

“O acordo foi sobre transparência e qualidade do serviço. Eles concordaram com uma proposta mais geral para se discutir os preços cobrados lá fora, que são muito altos. Num prazo razoável, vamos conseguir diminuir as tarifas cobradas”, acredita.

Sobre pontos de tráfego, o problema é o de que eles estão concentrados nos Estados Unidos e na Europa. Isso faz com que para um brasileiro ligar para alguém na Bolívia, a ligação dele tem que “viajar” para os Estados Unidos para ser redirecionada para a Bolívia, e isso custa tempo e dinheiro. “Este ano, perdemos US$ 500 bilhões em conexões internacionais. É completamente injusto esse sistema. Eu chuto que com US$ 100 bilhões daria para construir uma nossa. A questão é que precisamos de autorização para isso.”

RACHA

Para Joana Varon, da FGV e parte da delegação brasileira em Dubai, o que “melou” a adesão geral ao acordo foi a inclusão dos artigos sobre spam, segurança, governança e a maneira como foi feito.

“Essa resolução foi aprovada na quarta-feira em um procedimento bem questionável, que não envolveu votação. Só o chair (a presidência) “measuring the temperature of the room” (medindo a temperatura da sala)”, diz. “A aprovação já causou má vontade de países como os EUA. O que, com as seguintes definições, principalmente quanto ao texto de segurança/spam, causaram essa reação do país.”

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O secretário-geral da UIT, Hamadoun Touré, afirmou diversas vezes que a atualização das regulamentações de 1988 não tinham o objetivo de englobar temas referentes à internet ou sobre como é gerida.

Para Varon, o argumento oficial do chefe da reunião é “ensaboado” pois os limites entre telecomunicações e internet são frequentemente ultrassados. “Ao se falar de telecomunicações, tocamos na camada de infraestrutura da rede, mas entrando em temas de segurança ou spam, já começamos a migrar para a camada de conteúdo. A fronteira é tênue, e países que não se importam com o modelo multistakeholder (multisetorial) de governança e são a favor de que a ITU (onde apenas governos participam da tomada de decisão) tenha um papel na governança da rede, utilizam-se dessa zona cinza para ir abrindo portas nesse sentido.”

A nova regulamentação internacional de telecomunicações deve demorar ainda para se fazer valer. Devido à sua generalidade, a UIT se reunirá novamente entre outubro e novembro de 2014 em Busan, na Coreia do Sul, para destrinchar cada ponto. A expectativa, já explicitada no texto final da reunião, é de que as regras passem a valer a partir do início de 2015. Até lá muita coisa pode mudar, inclusive a lista de signatários.

“Terminado a WCIT, permanece a questão sobre qual o fórum mais apropriado para tratar da governança da rede de forma inclusiva, multissetorial e em respeito aos direitos humanos fundamentais. Enquanto essa questão não for resolvida, mais ameaças virão.”

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Quem deve controlar a internet?

—-Leia mais:Os detalhes da reunião em Dubai

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