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Por dentro da rede

Opinião|Valetas e Lombadas

ICANN gaba-se de ter regras abertas e ser participativa na definição de suas políticas

Atualização:

Foi exatamente no dia de São João que segui para Johannesburgo, África do Sul, num avião menos moderno e sem acesso à internet, para outra reunião da ICANN. Em plena crise de abstinência por falta de conexão durante as quase nove horas de voo, limitei-me a pensar na vida e, confesso, valeu a pena. Em retrospectiva, parece-me que perdemos ocasiões de introspecção, em que nos reencontramos e podemos avaliar o todo, sem os bipes e as interrupções comuns. Rareiam os ambientes em que podemos ser íntimos de nós mesmos. “Quero ficar sozinha”, disse Greta Garbo em Grande Hotel.

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Usei o tempo para pensar um pouco sobre os processos de tomada de decisão da ICANN, que não diferem muito dos que acontecem nas redes sociais. Há grupos vociferantes – em geral pequena fração da comunidade; há os que sempre sentem a necessidade de aderir a algo, mesmo sem noção clara do por quê; há os que escolhem aliar-se aos potenciais vencedores e apoiarão o grupo mais enfático, mais na moda, mais ululante; há os que divergem do processo em si e a ele se opõem de formas variadas; há os entediados, para quem o trabalho de expor seu ponto de vista é tão inútil quanto a própria discussão e, finalmente, há os que sequer sabem do processo e dele não participam. Esses podem constituir a maioria.

ICANN, órgão multissetorial que cuida da raiz de nomes da internet, é depositária de seus padrões técnicos, e distribui números IP. Gaba-se de ser uma instituição que tem regras abertas e participativas na definição de suas políticas e ações. Mesmo assim é difícil não sentir algum desconforto quando se veem decisões radicadas numa etérea “posição da comunidade”. 

Por exemplo, a primeira leva de quase 2000 domínios genéricos novos “atendeu a pressões da comunidade”, que necessitaria de mais opções para registro de nomes de domínio. Talvez “comunidade” aqui se refira aos interessados em atuar na área: uma pequena porção do todo. 

Se adicionarmos que os “genéricos” são, de longe, a maior fonte de receita da ICANN, há uma sugestão de que, talvez, o segmento que mais receita gera seja também o que mais atenção recebe. E nessa realimentação nem fica claro qual a causa e qual a consequência. 

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É fácil identificar reais necessidades: metade da humanidade não está conectada, muitas conexões são rudimentares, o custo pode ser elevado, os dispositivos podem não estar ao alcance. São pontos em que ICANN nada pode fazer diretamente, mas alegar que usuários da internet são prejudicados por falta de opções de registro parece-me fora de uma realidade primária.

Voltando ao “pensar”, vivemos hoje grandes oscilações sobrepostas à linha de evolução geral. São “lombadas” e “valetas” que nos levam, em tempo curto, bem acima ou muito abaixo do equilíbrio. Quanto tempo levou para que a febre do Pokémon cedesse? 

Essas lombadas e valetas tecnológicas são tão grandes que se perde de vista a rua e o rumo que aponta. Ao invés de discutirmos essa direção e rota, perdemo-nos em elucubrar sobre as oscilações. Afinal, elas nos causam impressão mais vívida que a própria rua e, assim, somos levados a aderir ao grupo de apoio da lombada X, ou à facção que critica fortemente a valeta Y. 

Lembra-me uma charada anedótica antiga: Qual o grito da torcida no campeonato de xadrez? É: Pensa! Pensa! Pensa! Talvez seja esse, afinal, um estímulo muito sensato.

Opinião por Demi Getschko
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