A duvidosa aposta da Kodak nas criptomoedas

Após quase falir por não inovar, empresa anunciou criação de moeda digital que pode ajudar fotógrafos a controlarem seus direitos autorais; para críticos, empresa surfa onda que não lhe pertence

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Por Kevin Roose
Atualização:
Jeff Clarke, presidente executivo da Kodak, defendeu 'mudança' na empresa Foto: NYT

Há uma ou duas eras geológicas, a Kodak – ou Eastman Kodak, para os tradicionalistas – era uma empresa de vanguarda no campo da tecnologia. No seu auge, ela contratava os mais inteligentes engenheiros, que trabalhavam arduamente para criar novas patentes, capazes de torná-la pioneira em processos químicos e criar uma divisão de filmes e câmeras que se propagou pelo mundo. Em áureos tempos, a empresa tinha 145 mil funcionários. 

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Mas a era da fotografia digital deixou a empresa para trás e hoje a empresa de Rochester, Nova York, é passado. Muitas de suas patentes foram vendidas, prédios de sua propriedade foram alugados ou demolidos e a Kodak continuou a encolher desde que entrou com um pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos em 2012.

Agora, ela tenta um retorno – baseado numa aposta nas criptomoedas. É uma aposta ousada que entusiasmou alguns investidores, surpreendeu outros e provocou questionamentos sobre seus parceiros envolvidos com a moeda virtual, como uma agência de fotografia de paparazzi, uma promotora de ações baratas e uma empresa que oferece uma invenção chamada de “máquina mágica de fazer dinheiro”.

No início de janeiro, a Kodak resolveu emprestar seu nome a uma moeda digital chamada KodakCoin. Sua meta era promover a “fotografia para capacitar fotógrafos e agências a terem mais controle dos direitos de imagem”.A ideia básica da nova moeda é usar o blockchain – sistema criado para tornar o possível as transações do bitcoin – para auxiliar os fotógrafos a gerenciarem suas coleções, gerando registros de propriedade imutáveis e permanentes. A Kodak também firmou um acordo de licenciamento com uma mineradora de bitcoins chamada Kodal KashMiner, que permite aos usuários gerarem suas próprias criptomoedas.

Onda. As ações da companhia subiram mais de 200% após os anúncios, e não caíram muito desde então. Parte disso se explica porque hoje o blockchain é uma espécie de talismã no no mercado de ações. Como os investidores têm se beneficiado com a popularidade de moedas como a Bitcoin e Ethereum – ao menos até a cotação dessas moedas despencarem na última semana –, várias empresas em dificuldades se recuperaram, pelo menos temporariamente, simplesmente adicionando “blockchain” a seus nomes. 

Outra alternativa é anunciar um novo empreendimento com a criptomoeda sem nenhuma relação com sua linha de trabalho. (O exemplo mais conhecido é o da Long Island Iced Tea Corporation, a empresa de chás gelados que triplicou seu valor da noite para o dia ao se renomear Long Blockchain Corporation). 

A sede da Kodak, em Rochester, no estado de Nova York Foto: NYT

 Essas medidas têm atraído a atenção também das agências reguladoras. Em um discurso recente Jay Clayton, chairman da Securities and Exchange Comission (SEC, na sigla em inglês, autoridade regulatória equivalente à CVM nos EUA), afirmou que a entidade “está examinando de perto as empresas que operam em bolsa que mudam seu modelo de negócios para tirar benefícios de uma presumível promessa da tecnologia blockchain”.

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A Kodak é a mais importante empresa da velha guarda a entrar no campo até agora, e talvez a mais controversa. Quase imediatamente os críticos censuraram os planos da companhia, considerando-os uma busca desesperada por dinheiro. “É como se uma empresa de capital aberto emitisse uma criptomoeda para tirar do túmulo o valor de suas ações”, disse Kyle Samani, sócio da empresa Multicoin Capital.

Direito autoral. O presidente executivo da Kodak, Jeff Clarke, afirmou que as ambições da companhia são autênticas. Ele começou a examinar a tecnologia no ano passado e percebeu que ela poderia resolver um problema perene dos fotógrafos – provar a propriedade de suas imagens, descobrir os que violam os direitos autorais e serem reembolsados. “Não é uma empresa de alimentos para cães que está criando uma moeda”, disse ele. “É uma solução real para o gerenciamento de direitos digitais em que a Kodak se envolveu há muitos anos”.

Em tese os fotógrafos poderão carregar suas imagens em uma plataforma chamada KodakOne, criar uma licença baseada em blockchain para cada imagem e utilizar um software de busca automática para rastrear a internet e descobrir violações de direitos autorais. Em vez de usar dólares, os fotógrafos podem ser pagos pelos clientes em KodakCoins.

A oferta pública de moedas (ICO, na sigla em inglês) da KodakCoin deve arrecadar em torno de US$ 20 milhões. Mas são poucos os detalhes quanto ao uso do dinheiro ou porque um sistema similar não poderia ser criado sem o blockchain. E há uma questão ainda mais óbvia: por que os fotógrafos desejariam receber em tokens digitais e não em dinheiro vivo? O gerenciamento dos direitos digitais é um problema real para os fotógrafos e em teoria a blockchain de fato oferece uma solução convincente. Mas os atributos específicos da KodakCoin comportam alguns riscos. 

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Em primeiro lugar, apesar do nome, ele não é um projeto Kodak. A empresa por trás do ICO, a WENN Digital, é uma companhia com sede na Califórnia, filial de uma agência de fotografia britânica especializada em licenciar fotos de paparazzi. Com base no acordo, a Kodak não receberá nenhum rendimento direto da oferta pública, mas terá uma participação minoritária na WENN Digital, 3% de todas as KodakCoins emitidas e um licença sobre receitas futuras. E é preciso pensar que uma moeda digital que tenta “democratizar a fotografia e tornar o licenciamento algo justo para os artistas”, nas palavras de Clarke, será facilmente acessível. Mas diante das normas baixadas pelo órgão regulador, as KodakCoins só estarão disponíveis para os chamados investidores credenciados. Nos EUA, trata-se de um investidor que tenha pelo menos US$ 1 milhão aplicados ou rendimentos anuais acima de US$ 200.000.

Quantos fotógrafos milionários obcecados por criptomoeda você conhece? E que tenham essas quantias aplicadas? E, ainda assim: mesmo que eles atendam as regras para participar do ICO, provavelmente terão muita dificuldade para gastar suas KodakCoins ou transformá-las em dinheiro vivo. 

“O melhor cenário é que eles acreditam que a tecnologia irá oferecer o que diz sua propaganda”, disse Jill Carlson, especialista em blockchain. “O pior é que eles estão sendo apenas muito oportunistas”.  Para Jeff Clarke, o presidente executivo da Kodak, é irônico que a empresa esteja sendo criticada por adotar uma nova tecnologia como as criptomoedas depois de sofrer com a falta de inovação. “Não estamos especulando”, diz. “Estamos adotando uma nova tecnologia emergente e usando-a para resolver um problema real.” / Tradução de Terezinha Martino

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