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A internet está morrendo – e acabar com a neutralidade da rede vai acelerar isso

A neutralidade da rede tem como finalidade evitar que as empresas que fornecem serviços de internet ofereçam tratamento preferencial a determinado conteúdo em suas linhas

Por Farhad Manjoo
Atualização:
Ajit Pai, presidente da FCC, durante discurso na Mobile World Congress 2017 Foto: Lluis Gene/AFP

A internet está morrendo.

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Calma: tecnicamente, a internet ainda funciona. Abra o Facebook no seu telefone e você ainda verá as fotos do bebê do seu primo. Mas essa não é realmente a internet. Não é a rede aberta, a rede "todo-mundo-pode-fazer" dos anos 1990 e início dos anos 2000, o produto de tecnologias criadas ao longo de décadas através de financiamento governamental e pesquisas acadêmicas. A rede que ajudou a desfazer o domínio total da Microsoft nos negócios de tecnologia e nos deu novidades como Amazon, Google, Facebook e Netflix.

No entanto, essa internet independente está morrendo de uma morte lenta – e uma votação no mês que vem pela Comissão Federal de Comunicações (FCC), a agência reguladora das telecomunicações nos Estados Unidos, para desfazer a neutralidade da rede seria o último travesseiro pressionado contra seu rosto.

A neutralidade da rede tem como finalidade evitar que as empresas que fornecem serviços de internet ofereçam tratamento preferencial a determinado conteúdo em suas linhas. As regras impedem, por exemplo, a AT&T de cobrar uma taxa das empresas que desejam transmitir vídeos de alta definição para as pessoas.

Como a neutralidade da rede abriga desde as startups – que não têm condições de pagar facilmente pelo acesso rápido – até as gigantes da Internet que podem pagar, as regras são apenas sobre o último baluarte contra a compra do controle corporativo total de grande parte da vida online. Quando as normas se forem, a internet ainda funcionará, mas parecerá e dará a impressão de ser outra coisa – uma rede em que as empresas desenvolverão negócios, ao invés de inovação, determinarão o que você experimenta, uma rede que se parece muito mais como a TV a cabo do que o Velho Oeste tecnológico que lhe deu Napster e Netflix.

Se isso soa alarmista, considere que o estado da concorrência digital já está bem lamentável. Como tenho argumentado regularmente, grande parte da indústria de tecnologia corre o risco de ser engolida por gigantes. A internet de hoje é terrível com guardiões, pedágios e monopolistas.

As cinco empresas americanas mais valiosas – Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft – controlam grande parte da infraestrutura online, desde lojas de aplicativos até sistemas operacionais para armazenamento em nuvem, passando por quase todo o negócio de anúncios online. Um punhado de empresas de banda larga – AT&T, Charter, Comcast e Verizon, muitas das quais também pretendem tornar-se empresas de conteúdo, e por que não? – fornecem praticamente todas as conexões de internet para as casas e os smartphones americanos.

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Juntas, essas empresas gigantes criaram a internet em um sistema de feudos historicamente lucrativo. Eles transformaram uma rede cuja grande promessa foi a inovação interminável em uma que ficará atolada na lama, onde cada startup fica à mercê de algumas das maiores corporações do planeta.

Muitas empresas sentem essa mudança. Em uma carta a Ajit Pai, o chairman da FCC, que redigiu o pedido de revogação da neutralidade da rede, mais de 200 startups afirmaram, nesta semana, que a ordem “colocaria as pequenas e médias empresas em desvantagem e impediria que as novas e inovadores sequer saíssem do chão”. Isso, disseram eles, é o “oposto do mercado aberto, com algumas poderosas empresas de telefonia e cabo escolhendo vencedores e perdedores em vez de consumidores”.

Esta não era a forma como a Internet foi projetada para ser. No seu nível técnico mais profundo, a internet foi projetada para evitar os pontos centrais de controle que agora a comandam. O esquema técnico emergiu de uma filosofia ainda mais profunda. Os projetistas da internet entenderam que as redes de comunicação ganham novos poderes através dos seus nós finais – ou seja, através dos novos dispositivos e serviços que se conectam à rede, em vez dos computadores que gerenciam o tráfego na rede. Isso é conhecido como o princípio de "fim-a-fim" do design de rede, e basicamente explica por que a internet levou a tantas inovações mais do que as redes centralizadas que vieram antes, tais como a antiga rede telefônica.

O poder singular da internet, em seus dias iniciais de corrida ao ouro, era sua flexibilidade. As pessoas poderiam imaginar uma série fantástica de novos usos para a rede, e tão rápido como isso, poderiam construí-los e implantá-los – um site que vendeu livros, um site que catalogou a informação do mundo, um aplicativo que permite que você “tome emprestado” música popular de outras pessoas, uma rede social que pode conectá-lo a qualquer um.

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Não foi necessário permissão para fazer nada disso; algumas dessas inovações arruinaram as indústrias tradicionais, algumas alteraram fundamentalmente a sociedade, e muitas delas eram legalmente questionáveis. Mas a internet significava que você poderia simplesmente lançar a novidade, e se funcionasse, o resto do mundo rapidamente iria adotá-la.

Mas se a flexibilidade foi a promessa inicial da internet, logo foi colocada em perigo. Em 2003, Tim Wu, professor de direito agora na Columbia Law School (ele também contribui para o The New York Times), viu sinais de iminente crescimento do controle corporativo sobre a internet. As empresas de banda larga que investiam grandes somas para lançar serviços de internet cada vez mais rápido para os americanos estavam se tornando desconfiadas de atuar uma rede onde tudo valia.

Alguns dos novos usos da internet ameaçavam seus resultados financeiros. As pessoas estavam usando serviços on-line como uma alternativa ao pagamento de TV a cabo ou serviço de telefonia de longa distância. Eles estavam conectando dispositivos como roteadores de Wi-Fi, que lhes permitiam compartilhar conexões com múltiplos dispositivos. Na época, havia insistentes relatórios de empresas de banda larga que procuram bloquear ou mesmo frustrar esses novos serviços; em alguns anos, alguns provedores de banda larga começariam a bloquear os novos serviços de forma definitiva.

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Para Wu, os monopólios de banda larga pareciam uma ameaça à ideia de ponta-a-ponta que alimentava a internet. Em uma revista de advogados, ele delineou uma ideia de regulamentação para preservar o projeto da igualdade de oportunidades da internet - e, portanto, daí nasceu “neutralidade da rede”.

Embora tenha sido através de uma série de contestações legais e ressurreições, alguma forma de neutralidade da rede tem sido o regime governante na internet desde 2005. A nova ordem da FCC reverteria completamente a ideia; as empresas teriam permissão para bloquear ou exigir o pagamento de determinado tráfego como quisessem, desde que divulgassem os acordos.

No momento, as empresas de banda larga estão prometendo não agir de forma injusta, e elas argumentam que desfazer as regras iria dar a elas maiores incentivos para investir mais em sua capacidade de banda larga, em última análise, melhorando a internet. Brian Hart, um porta-voz da FCC, disse que empresas provedoras de banda larga ainda estarão cobertas por leis antitruste e outras destinadas a prevenir comportamentos que violem as leis sobre competitividade. Ele observou que as propostas de Pai simplesmente fariam a rede retornar a uma era reguladora pré-neutralidade-da rede.

"A internet floresceu sob esse contexto antes, e o fará de novo”, disse ele.

As empresas de banda larga estão adotando uma linha semelhante. Quando apontei para uma porta-voz da Comcast que as promessas da empresa eram apenas facultativas – que nada impedirá a Comcast de um dia criar níveis especiais de serviço de internet com conteúdo agregado, da mesma forma que agora vende TV a cabo – ela sugeriu que eu estava pondo a carroça à frente dos bois.

Afinal, as pessoas estão prevendo o fim da internet há anos. Em 2003, Michael Copps, um comissário designado pelos democratas na FCC que ficou alarmado com os pontos de estrangulamento central, então assumindo o comando da internet, argumentou que “podemos estar testemunhando o início do fim da internet como a conhecemos”.

Esse tem sido um tema recorrente entre aqueles que esquentam a cabeça desde então. Em 2014, a última vez em que a neutralidade da rede parecia prestes a ser destruída, Nilay Patel, editor do The Verge, declarou a morte da internet (ele usou outra palavra para “morte”). E ele fez isso novamente este ano, antecipando a proposta de Pai.

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Mas olhe, você pode dizer: apesar das lamentações, a internet seguiu em frente. Startups ainda são sendo financiadas e oferecendo suas ações no mercado. Novas coisas loucas ainda serão inventadas, desafiando todas as expectativas; o Bitcoin, tão Velho Oeste como se espera, acaba de atingir os US$ 10 mil em algumas casas de câmbio. Bem OK. Mas uma rede vibrante não morre de uma hora para outra. É preciso tempo e negligência; ele fica cada vez mais fraca, mas imperceptivelmente, de modo que um dia estaremos vivendo em um mundo digital controlado por gigantes e encaremos a coisa toda como normal.

Não é normal. Não foi sempre assim. A internet não precisa ser um parque infantil corporativo. Esse é apenas o caminho que escolhemos. / Tradução de Claudia Bozzo

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