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O que significa ser dono de uma coisa?

Os dispositivos digitais estão colocando em questão a natureza da propriedade

Por The Economist
Atualização:
Elétrico. Tesla proíbe uso de veículos em apps como Uber Foto: Reuters/Lucy Nicholson

Ser dono de uma coisa costumava ser algo tão claro e exato quanto fazer um cheque. Quando alguém comprava um aparelho, passava a ser seu proprietário. Se a geringonça quebrava, a pessoa podia mandá-la para o conserto. Quando não a queria mais, podia vendê-la ou jogá-la fora. Algumas empresas encontraram maneiras de explorar o mercado de pós-venda com garantias estendidas, assistências técnicas e estratégias como a comercialização de impressoras baratas e cartuchos de tinta caros. Mas esses truques para ampliar os lucros não questionavam, em essência, o que significa ser dono de uma coisa.

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Na era digital, a noção de propriedade tornou-se bem mais escorregadia. Foi o que perceberam os proprietários de automóveis Tesla, quando souberam que o presidente da montadora, Elon Musk, proíbe que seus carros elétricos sejam utilizados para trabalhar com aplicativos de transporte alternativo, como o Uber. Os agricultores que lavram suas terras com tratores John Deere também já se deram conta do problema: são “aconselhados” a não mexer no software que controla suas máquinas.

Desde o advento dos smartphones, os consumidores vêm tendo de se conformar com o fato de que não controlam os softwares de seus dispositivos. Têm apenas licença para utilizá-los. Mas, com os controles digitais apertando o cerco com número cada vez maior de engenhocas e traquitanas, dos automóveis e termostatos aos brinquedos eróticos, determinar quem é dono de quê e quem controla o quê está se tornando problemático. Os consumidores precisam tomar consciência de que alguns de seus direitos de propriedade estão sob ameaça.

Propriedade ou divisão. A tendência nem sempre é maléfica. Os fabricantes que buscam restringir o que os proprietários podem fazer com tecnologias cada vez mais complexas têm bons motivos para proteger seu copyright, garantir que suas máquinas funcionem adequadamente, respeitar exigências ambientais e prevenir ataques de hackers. Às vezes, as empresas empregam o controle que têm sobre os softwares de determinados produtos em benefício do consumidor. Quando o furacão Irma atingiu a Flórida, no mês passado, a Tesla realizou remotamente um upgrade do software que controla as baterias de alguns de seus modelos, garantindo maior autonomia aos veículos para que seus proprietários pudessem percorrer distâncias maiores e escapar da tempestade.

No entanto, quanto mais funcionalidades digitais forem sendo acrescentadas às coisas, mais a balança do controle sobre elas penderá para o lado dos fabricantes. Isso traz inconvenientes. Escolher um carro já é difícil, mas pode se tornar ainda mais maçante se a pessoa tiver de consultar o manual para se inteirar das restrições que a montadora impõe ao uso do veículo e dos dados de que estará abrindo mão ao dirigi-lo. Se isso levar a um aumento da obsolescência programada, também pode encarecer os produtos. O conserto de smartphones e lavadoras de roupa já se tornou bastante complicado, o que significa que, quando essas coisas quebram, as pessoas as jogam fora, em vez de tentar repará-las.

A privacidade também está sob ameaça. Muitos consumidores ficaram horrorizados ao descobrir que, além de limpar o chão de suas casas, os aspiradores de pó robóticos da marca iRobot também criavam mapas digitais do interior da residência, os quais poderiam ser vendidos a anunciantes (embora o fabricante garanta que não pretende fazer isso). Quando hackers descobriram que o vibrador We-Vibe, que se conecta a um aplicativo de smartphone, registrava e gravava informações extremamente íntimas, a fabricante Standard Innovation se dispôs a pagar até US$ 3,2 milhões aos donos do brinquedo erótico e seus advogados. 

Agricultores se queixam de que, se tiverem problemas na hora errada, a exigência estabelecida pela John Deere – segundo a qual seus tratores só podem ser operados com um software autorizado, que os encaminha para assistências técnicas situadas a vários quilômetros de distância – pode ter consequências comercialmente devastadoras. Alguns deles vêm contornando a limitação com softwares piratas trazidos do Leste Europeu.

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Direito. Tais intromissões deveriam servir para lembrar às pessoas de que elas devem zelar por seus direitos de propriedade. Os consumidores precisam brigar por seu direito de manipular como bem entenderem as coisas de que se tornam proprietários, modificando-as se o desejarem.

Nos EUA, a ideia já inspira o movimento pelo “direito ao conserto”. Em diversos Estados, os legisladores discutem sua transformação em lei. O Parlamento Europeu quer que os fabricantes tornem alguns produtos, como as lavadoras de roupas, mais fáceis de consertar. Na França, os fabricantes de eletrodomésticos são obrigados a informar aos consumidores quanto tempo o aparelho deve durar, o que serve para dar uma ideia de até que ponto ele pode ser consertado. 

As autoridades deveriam estimular a concorrência, garantindo, por exemplo, que as assistências técnicas independentes tenham o mesmo acesso a informações sobre os produtos, ferramentas próprias e peças das autorizadas — diretriz que já é adotada pela indústria de carros.

As pessoas não deixarão de ser donas das coisas que compram, mas o significado disso está mudando. E o fenômeno exige análise cuidadosa. A venda de um aparelho tem como pressuposto a ideia de que seu comprador poderá fazer o que quiser com ele. A partir do momento em que o dispositivo é controlado por outrem, essa liberdade fica comprometida. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER ] © 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

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