Esqueça Playstation e Xbox: o principal console do mundo é o smartphone

Avanços nos jogos, nos celulares e nos modelos de negócio tornaram os telefones a principal plataforma de jogatina do mundo

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Por Shannon Liao
Atualização:
O boom dos jogos para celular mudou a maneira como as pessoas jogam ecomo os jogos são desenvolvidos Foto: Andrew Harrer/Bloomberg

Quando os primeiros smartphones foram lançados no início dos anos 2000, os jogos para celulares eram simples como o "jogo da cobrinha", em que o jogador conduzia uma cadeia de pixels em formato de cobra ao redor da tela para comer outros pixels e fazer o animal crescer mais. Depois, o mercado se expandiu para os jogos como o "Candy Crush Saga", em 2012, jogado principalmente nas horas de transporte público ou de espera em consultórios médicos.

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Atualmente, mais de três bilhões de pessoas têm smartphones e mais de dois bilhões delas jogam nesses telefones. E alguns desses jogos para celular de hoje já rivalizam com a qualidade dos jogos tradicionalmente jogados em consoles e computadores caríssimos.

Há uma década, os jogos para celulares eram subestimados e considerados "sem importância" tanto pelos jogadores quanto pelos desenvolvedores, em comparação com seus irmãos mais sofisticados, como computadores, PlayStations e Xboxes. Mas o setor de jogos para celular é tão grande agora que não pode ser ignorado: em 2019, os gastos dos jogadores com esses games ultrapassaram os de console e de computador combinados, de acordo com o NPD Group, uma empresa de pesquisa de mercado. E embora a pandemia tenha afetado os gastos com jogos para celulares em 2020 – em parte devido ao aumento do desemprego – eles ainda foram significativamente maiores do que os com consoles ou computadores, de acordo com várias empresas de análise de mercado.

Os jogos para celulares geraram uma receita estimada de quase US$ 80 bilhões em 2020, em comparação com os games para computadores, que renderam quase US$ 37 bilhões, e para consoles - como o Nintendo Switch, o PlayStation da Sony e o Xbox da Microsoft - totalizando US$ 45 bilhões, de acordo com a empresa de análise de jogos Newzoo.

Os jogos mudaram

Grandes editoras de jogos como a Activision Blizzard e gigantes da tecnologia como a Apple têm despertado para a oportunidade de investir em jogos para celulares. Conforme novos modelos de negócios lucrativos surgem - como jogos grátis com opções de compra no aplicativo - as empresas têm gerado mais receita criando jogos elaborados e complexos para dispositivos móveis.

O crescimento tem sido rápido. Em 2015, a Apple e o Google, que controlam os dois principais mercados de download de aplicativos para celulares, arrecadaram quase US$ 27 bilhões em receita bruta com jogos em todo o mundo. Esse número deve aumentar quase 300% nos próximos cinco anos, de acordo com Craig Chapple, estrategista de ideias para dispositivos móveis da Sensor Tower.

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O boom dos jogos para celular mudou a maneira como as pessoas jogam, como os jogos são desenvolvidos e nossas expectativas em relação ao que está disponível nas plataformas móveis. Este mês, duas empresas que enriqueceram com os jogos para celulares - Apple e Epic Games - brigaram no tribunal para decidir se a Apple App Store se tornou um monopólio. É um caso que pode mudar a forma como a loja de aplicativos da Apple opera e se o jogo da Epic, "Fortnite", um título que gerou mais de US$ 1 bilhão por meio da App Store, algum dia voltará a estar disponível para iPhones.

Há mais ou menos uma década, os desenvolvedores de jogos para celulares achavam que as pessoas abriam seus telefones por alguns segundos para matar o tempo ocioso e depois os deixavam de lado.

"Alguns anos atrás, qualquer um teria dado risada de você se falasse de um jogo com duração média de 17 minutos... para celular", disse Michael Chow, que ajudou a criar o "Palavras com amigos", lançado em 2009. Chow trabalhou no desenvolvimento do jogo quando estava na Newtoy, uma empresa fundada por dois primos e depois vendida para a empresa de aplicativos Zynga. Os jogos multiplayer como "Palavras com amigos" foram desenvolvidos para começar a funcionar em menos de três segundos e permitir uma partida com alguns minutos de duração (formando palavras a partir de letras soltas em um tabuleiro), enquanto as pessoas se revezavam de forma assíncrona.

"Esse era o nosso objetivo e estava certo, na verdade, para aquele momento da indústria e para nossos jogadores da época", disse Chow. "Agora, se você olhar para os dez jogos mais jogados ao redor do mundo, nenhum deles atende a qualquer uma dessas características."

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Chow atualmente é o produtor executivo do novo jogo para celular da Riots Games, "League of Legends: Wild Rift", que pode levar cerca de 15 a 30 minutos por rodada enquanto os jogadores jogam em tempo real.

Os avanços na tecnologia dos smartphones abriram mais espaço para vastas experiências com jogos para celulares, mas desenvolver jogos para iPhones com hardware básico uma década atrás era outra história.

"Por mais bonito que fosse o iPhone original, sua tela era muito menor", disse Humam Sakhnini, presidente da King, que desenvolve a franquia "Candy Crush". Sakhnini assumiu a presidência depois que a empresa foi comprada pela Activision Blizzard em 2016. "A tela sensível ao toque era muito diferente. O processamento era diferente, a duração da bateria era diferente."

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Naquela época, "os jogos surgiam e desapareciam em pouco tempo", disse Sakhnini. Mas títulos como "Candy Crush" prosperaram por quase uma década. Essa resistência ajudou a mudar as expectativas e atrair mais desenvolvedores para o setor.

A capacidade dos jogos para dispositivos móveis de encontrar modelos de negócios de sucesso desde o início também favoreceu a chegada de mais profissionais. O modelo free-to-play funcionou bem para muitos jogos, incentivando downloads sem custo para os usuários, enquanto impulsionava a receita por meio de compras no aplicativo ou com a inserção de anúncios no jogo. O "Candy Crush", por exemplo, vende barras de ouro virtuais aos jogadores em troca de dinheiro de verdade.

As barras de ouro podem ser usadas para comprar doces que ajudam a combinar combos e passar de fase, e também podem ser usadas para comprar vidas extras para continuar jogando.

Os modelos mudaram

Os jogos para celulares têm explorado várias maneiras de monetizar, desde sistemas de gacha - no qual os jogadores podem gastar dinheiro para ter uma chance de ganhar itens preciosos no jogo - a passes de batalha em jogos como "Fortnite" e "Call of Duty: Mobile" - que, depois de um pagamento adiantado, desbloqueia mais recompensas para os usuários à medida que passam mais tempo jogando. Parcerias com varejistas e licenciamento de franquias populares, como a Marvel e Star Wars, para personagens e itens do jogo são outra forma de os desenvolvedores de jogos para dispositivos móveis fazerem os fãs gastarem dinheiro.

O "Fortnite", que incorporou dezenas de parcerias com marcas, gerou quase US$ 1,2 bilhão com gastos de jogadores na App Store da Apple, desde seu lançamento em 2018 até sua remoção em 2020. A Apple ganhou mais de US$ 100 milhões com as comissões de receita do "Fortnite" durante os últimos 11 meses em que o jogo esteve em sua loja de aplicativos, estimou o executivo da Apple, Michael Schmid, em depoimento no tribunal durante o julgamento com a Epic.

Os jogos para celulares tradicionalmente atraem um público mais diversificado, já que praticamente qualquer pessoa pode ter um smartphone. Cerca de 45% dos jogadores de iPhone do "Candy Crush Saga" nos Estados Unidos no mês passado tinham mais de 45 anos, de acordo com Ted Krantz, CEO da App Annie, uma empresa que analisa o desempenho de aplicativos. Cerca de metade dos jogadores em dispositivos móveis são mulheres, de acordo com a Associação de Softwares de Entretenimento. Krantz disse que o celular está "democratizando os jogos para o grande público, ao proporcionar uma experiência de jogo portátil no bolso de cada proprietário de smartphone em todo o mundo".

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Em países em desenvolvimento, as pessoas costumam jogar em seus telefones, em vez de em qualquer outro dispositivo.

"Moro no sudeste Asiático desde 2012", disse Simon Davis, CEO da Mighty Bear Games. A Mighty Bear desenvolveu o jogo multiplayer de batalha "Butter Royale" para a Apple Arcade, o serviço de assinatura de jogos da Apple que custa US$ 5 por mês após um período de teste gratuito. "Esta parte do mundo prioriza os dispositivos móveis, mas não há esnobismo em relação a eles porque eles são apenas a plataforma de jogos padrão para quase um bilhão de pessoas aqui."

Os desenvolvedores de jogos para console e computador perceberam essa ampla base de usuários e usaram dispositivos móveis para atingir um público mais amplo, com títulos como "Call of Duty: Mobile" e "Crash Bandicoot: On the Run!"

"Ao longo dos anos, houve uma série de negociações significativas por parte das empresas de console de primeira linha, também conhecidas como Triple-A, para entrar no mercado de dispositivos móveis", disse Chapple, da Sensor Tower. "Longe de oferecer apenas títulos pequenos e casuais, o mercado de jogos para celulares agora atende a todos os gostos com títulos que são atualizados regularmente para manter os jogadores engajados por anos."

Um dos maiores investimentos por parte de uma grande editora de jogos focada em consoles e computadores no setor de dispositivos móveis veio em 2016, quando a Activision Blizzard adquiriu a King por US$ 18 por ação, ou um valor patrimonial total de US$ 5,9 bilhões.  A transação chamou a atenção da indústria de jogos, assim como o sucesso de outros títulos para celular como  "Angry Birds" (2009), "Clash of Clans" (2012) e "Pokémon Go" (2016).

Os celulares mudaram

"O chipset em um telefone é melhor do que o PlayStation 2", disse Michael Pachter, analista de videogames e chefe de pesquisa da empresa de serviços financeiros Wedbush. "O tamanho da tela é obviamente minúsculo, mas você pode mesmo ter jogos incríveis no celular nos dias de hoje."

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Os jogos desenvolvidos para dispositivos móveis atualmente têm grandes ambições. "Runescape Mobile", uma versão para celular do jogo multiplayer de 2001 com lançamento previsto para junho, será jogado em tempo real - como muitos títulos gratuitos para computador e console - e tem atualizações previstas com mais conteúdo ao longo do tempo.

"Tornou-se uma oportunidade que não poderíamos ignorar", disse Dave Osbourne, designer-chefe do jogo "Runescape" na Jagex. "Nossos jogadores estão descobrindo que têm cada vez menos tempo para um jogo multijogador massivo on-line (MMO). Mas ainda assim eles têm tempo para os dispositivos móveis."

Ryan Ward, produtor executivo de "Runescape" na Jagex, disse que o plano, para começar, é lançar a versão para celular do "Runescape", receber feedback dos jogadores, continuar a dar suporte e atualizar o jogo.

"Nosso primeiro trabalho foi transportar tudo para lá", disse Ward. "E vamos ver se ter um MMO em grande escala [no celular] é mesmo viável."

O "Runescape" no celular terá paredes transparentes para que os usuários possam espiar um pouco do cenário e navegar pelos mapas enormes com mais facilidade, além de apresentar outros ajustes para facilitar a execução do jogo em uma tela menor.

Gigantes da tecnologia como Apple, Google, Microsoft e Amazon também estão experimentando diferentes estratégias para jogos em dispositivos móveis. A Apple foca no serviço de assinatura com o Arcade, lançado em 2019, que oferece acesso a uma coleção com curadoria de mais de 180 jogos que não operam com anúncios ou compras no meio dos jogos.

À medida que mais estúdios de jogos investem em dispositivos móveis, isso pode mudar a forma como os jogos são projetados, visto que eles lidam com as restrições de tempo livre das pessoas, períodos de atenção e limites de hardware de telas menores, dados de celular e muito mais.

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"O futuro é desenvolver primeiro para os dispositivos móveis e, em seguida, fazer versões ligeiramente modificadas ou sofisticadas para as plataformas de desktop", disse Davis, CEO da Mighty Bear Games."Porque se você realmente conseguir acertar na experiência para o celular, ela funcionará perfeitamente em todos os dispositivos. Você projeta com um maior número de limitações, isso sempre lhe oferece as soluções mais inovadoras... e com o tempo, você provavelmente verá mais e mais desenvolvedores adotando a mesma estratégia.”

Há outra possibilidade relacionada aos celulares que poderia levar jogos populares dos computadores e consoles para dispositivos móveis via streaming. O Google e a Amazon lançaram plataformas de jogos em nuvem que permitem aos usuários jogar versões completas de consoles premium e jogos de computador em seus dispositivos móveis. Embora os jogos em nuvem estejam demorando em se tornar populares, eles poderiam impactar os jogos para dispositivos móveis como conhecemos hoje.

O serviço de jogos em nuvem da própria Microsoft está atualmente disponível para assinantes do Xbox Game Pass em fase de teste, mas não foi autorizado para ser executado na Apple App Store devido às rígidas diretrizes da plataforma. Mas se a Apple perder o processo judicial contra a Epic, pode ser forçada a abrir as portas de sua App Store e permitir aplicativos de jogos em nuvem como os da Microsoft no iPhone. Resta saber se os métodos mais experimentais irão pegar.

"No pior dos casos, poderemos ter o jogo em nosso telefone e reproduzi-lo em nossa televisão", disse Pachter, analista da Wedbush. "É aí onde está a tecnologia hoje. E agora todo mundo sabe que precisa estar neste ramo." / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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