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‘As pessoas estão cansadas de só ver histórias de Hollywood’, diz diretor da Netflix

Líder no mercado de streaming,  Netflix reforça aposta em conteúdo local e original para bater rivais como HBO, Disney e Apple; ao Estado, executivo explica algoritmos e estratégia de mercado da empresa

Por Bruno Capelas
Atualização:
Greg Peters, diretor global de produtos da Netflix:streaming é negócio que vai durar décadas Foto: André Lucas/Estadão

Em 2019, a Netflix vive uma situação curiosa. De um lado, a empresa é sinônimo de serviço de streaming de vídeo. Do outro, nunca viu tantos rivais disputando esse posto: nesta semana, chegou ao mercado o Apple TV+. Em 15 dias, será a vez do Disney+. São concorrentes de peso – e isso para não falar em Amazon e HBO, já presentes no mercado há algum tempo. 

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Na visão de Greg Peters, diretor global de produto da empresa, a competição é bem vinda. “Cada vez mais pessoas encontrarão na internet as suas histórias favoritas”, diz ele em entrevista exclusiva ao Estado. Mas ele ressalta: “estamos há uma década neste negócio e aprendemos várias lições que os rivais terão de descobrir agora.”

Além da experiência, Peters aposta em outra arma para bater os desafiantes: a produção de conteúdo original, com séries e filmes feitas no mundo todo. Em 2020, a empresa pretende investir R$ 350 milhões apenas em produções brasileiras. Ao Estado, o executivo fala também sobre como a Netflix usa dados para criar programas e recomendar atrações aos usuários. Ele explica ainda sobre como o negócio da empresa, com dívidas de US$ 12 bilhões, pode se tornar sustentável e afirma que ainda veremos conteúdo na TV por muito tempo. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

A Netflix anunciou que vai investir R$ 350 milhões em produções brasileiras em 2020. Por que é importante contar histórias locais?

Se só contássemos histórias de Hollywood, estaríamos nos limitando a apenas uma fração da experiência humana e da energia criativa que existe no mundo. Para mim, a pergunta é o contrário: por que não trabalhar com histórias locais? 

Bem, porque é mais difícil…

É um bom ponto, mas é aí que a tecnologia entra. Hoje, nós conseguimos levar uma história do Brasil para o mundo todo graças a ela. A parte mais difícil continua igual: é preciso ter conexões locais, não é algo que se faz à distância. As pessoas estão cansadas de só ver histórias de Hollywood. Elas querem ouvir histórias do mundo todo. 

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Do ponto de vista de tecnologia e de dados, como dá para saber que uma história brasileira pode funcionar globalmente? 

Honestamente, não sabemos: toda produção é uma aposta. Nós usamos dados da mesma forma que a indústria tradicionalmente usa – com números de audiência de cada programa. Não dá para colocar a visão do Kondzilla sobre uma série que mostra o mundo do funk no Brasil dentro de uma equação. Não é assim que acontece. Podemos direcionar as produções, querer fazer mais comédias ou programas de não-ficção, mas no fim do dia, tudo se resume a um ser humano com uma visão sobre como uma história deve ser contada. As pessoas querem visões autênticas de uma parte específica do mundo. 

A Netflix usa dados para comprar conteúdo “de catálogo”, isto é, licenciado? 

É algo parecido: se achamos que não temos filmes brasileiros o suficiente, vamos atrás de quem é dono desse conteúdo e checamos se há interesse. 

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Grandes estúdios e empresas de mídia estão agora lançando seus próprios serviços de streaming. Está mais difícil conseguir conteúdo licenciado? 

Estamos vendo uma mudança na indústria: há serviços novos e isso muda a natureza das conversas para licenciamento de conteúdo. É algo que nós esperávamos há algum tempo – tanto que começamos a produzir nosso próprio conteúdo original. Há razões que nos motivam a isso: uma é a possibilidade de lançar o conteúdo ao mesmo tempo para todos os países em que estamos presentes. Também gostamos de dar liberdade para os criadores, permitir que uma série seja filmada em resolução 4K ou HDR, por exemplo – e com conteúdo licenciado é mais difícil, pois estas decisões já foram tomadas. 

O futuro da Netflix está no conteúdo original, então? 

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Sim. Passamos os últimos dez anos focados em explicar o que era o streaming, sendo pioneiros em uma experiência para os usuários. Hoje, as pessoas já sabem o que isso significa: uma assinatura, sem anúncios, em que o usuário pode escolher o que quer ver a qualquer hora e em qualquer dispositivo. Vamos continuar nessa trilha, mas vejo uma grande oportunidade em trabalhar com criadores de conteúdo. Podemos dar uma plataforma a eles que permite que contem suas histórias da melhor forma possível – 4K, HDR, som –, sem que eles se preocupem com a logística. Não importa se é KondZilla em São Paulo ou um novo diretor em Hollywood: todos têm acesso. Também temos feitos coproduções com empresas como BBC e NHK, é um caminho interessante. Estamos abertos a isso aqui no Brasil. 

Existe algo como um “padrão Netflix de qualidade”, algo que só as produções da empresa têm? 

Creio que não. As pessoas são diferentes e têm gostos diferentes. Não quero que a Netflix sirva apenas um gosto específico. Queremos atender multidões, de maneira que programas serão diferentes por conta de seus criadores – um filme de Scorsese e uma série de Kondzilla não serão a mesma coisa, mesmo sendo ambos da Netflix. O que espero é que as pessoas olhem nossos programas e pensem que são bons. 

Do ponto de vista do usuário, lançar uma série no mundo todo parece simples como apertar um botão. É só isso? 

É bem mais difícil: para cada nova série, fazemos legenda e dublagem para mais de 30 línguas diferentes. É preciso que tudo esteja pronto para ser distribuído e enviado ao mundo todo. Temos uma infraestrutura de servidores para que o conteúdo fique mais “perto” dos usuários e o vídeo comece rápido, sem ficar travando. Só quando isso fica pronto é que podemos apertar o botão para lançar. 

Como é o trabalho de dublar e legendar séries para 30 línguas e ainda assim manter o contexto original? 

É difícil: se a tradução for superficial, perdemos o que é o mais interessante, que é a cor local. O que nós fizemos foi criar relacionamentos com tradutores que entendem um espaço criativo em cada língua. Como exemplo: ao traduzir Sintonia pro vietnamita, precisamos de alguém que não só entenda as duas línguas, mas também o que a música significa para as pessoas, algo sobre questões sociais e sobre romance. Um tradutor de turco para filmes de ação pode não entender bem o tom de um filme de romance. Cada trabalho tem suas especificidades. 

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Essas práticas serão um diferencial da Netflix contra os rivais?

Acredito que sim. Estamos neste negócio há uma década, aprendendo centenas de lições a cada ano. Imagino que os rivais terão de aprender algumas lições. Mas enquanto eles aprendem, eu também quero continuar descobrindo coisas novas. 

Há quem afirme que a pirataria pode aumentar com a profusão de serviços de streaming sendo lançados – afinal, o usuário não vai pagar por todos. É algo que preocupa vocês? 

Temos visto o contrário: a pirataria está caindo. As pessoas aceitam pagar por conteúdo quando ele está disponível de forma acessível. Acho que, com a proliferação de serviços, as pessoas vão só aumentar o número de descobertas das histórias que querem ver. Claro, vamos ter que descobrir quais serviços vão sobreviver ao longo dos anos, mas acredito que a pirataria só tende a cair. 

Para fazer conteúdo original, a Netflix está fazendo empréstimos. A dívida já está acima de US$ 12 bilhões. Essa conta vai fechar?

Não estou preocupado com isso. A metáfora é a seguinte: estamos construindo um prédio de apartamentos. É preciso gastar muito dinheiro no começo, para depois conseguir cobrar aluguel por eles. Licenciar conteúdo é pagar aluguel. Fazer conteúdo é construir o prédio – e depois de três anos investindo poderemos ver o retorno disso. Acredito que quem nos empresta dinheiro têm confiança em nós – afinal, é o dinheiro deles. Estamos melhorando nossos níveis de receita e lucro, queremos mostrar às pessoas que temos um modelo sustentável de negócios. Não somos malucos que nem o WeWork.

A Netflix já ganhou alguns Oscars e prêmios. Ganhar um Oscar de melhor filme mudaria o jogo? 

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Nossa meta é satisfazer os assinantes. Alguns se importam com os prêmios; outros preferem produções que nunca vão passar perto do tapete vermelho. Os criadores também se interessam em ganhar prêmios, então eu não ficaria surpreso se ganhássemos alguns. Mas nosso foco é fazer coisas que as pessoas queiram assistir no mundo todo. 

Um comentário frequente sobre a Netflix é que, apesar dos muitos lançamentos, as pessoas acham poucos conteúdos atrativos. Elas mantém a assinatura só para ver algo a cada dois ou três meses. Existe alguma métrica sobre a quantidade de programas necessária para reter um assinante? 

Não. Em geral, descobrimos que um usuário dá mais valor à Netflix quando vê mais programas, mas não há nenhum número mágico. Cada pessoa é diferente: há aquelas que sempre precisam ver um programa novo. Outras assinam com um cartão pré-pago, ficam conosco por um ou dois meses e depois retornam. Entendemos essas necessidades e queremos ser flexíveis para o que o usuário quiser. 

A Netflix está trabalhando em uma função que permitirá ver séries e filmes com velocidade de execução até 50% vezes mais rápido. Por que trabalhar nisso? 

Estamos sempre pensando em experiências para os assinantes – e vários deles nos pediram isso. É uma função que já existia no DVD, então decidimos tentar. Ainda estamos colhendo comentários sobre isso, não só dos usuários, mas também dos criadores. O usuário vem primeiro, mas o criador vem logo atrás em importância. Fiquei surpreso com as reações negativas, até porque críticos de TV já disseram que usam esse tipo de função para assistir séries e escrever sobre elas. Mas vamos descobrir em breve o que fazer sobre isso. 

Como o algoritmo da Netflix funciona? Só porque vi um filme de ação, vou receber mais indicações de filmes de ação, mesmo não sendo fã do gênero? 

Estamos tentando sempre descobrir como melhorar nisso. Imagine que eu e você assistimos as mesmas seis séries. Se eu assistir uma sétima, pode ser um sinal de que você vai gostar também. É o que chamamos de “cluster de gostos”. Nós testamos isso bastante: damos recomendações parecidas a pessoas que assistem as mesmas coisas – mas se as pessoas não assistirem a uma sugestão, é um indicativo que nem toda recomendação funciona. 

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O catálogo da Netflix nos EUA é bem diferente do que há no Brasil. Algum dia haverá um catálogo global universal? 

É o nosso objetivo, mas acredito que não acontecerá nos próximos anos. Queremos que todos os programas estejam disponíveis para todos os nossos usuários. O conteúdo original nos ajuda nesse sentido, mas com licenciamento é um pouco mais difícil. 

Conforme a indústria se move para o streaming, há riscos de existirem buracos – é difícil achar filmes de diretores como Billy Wilder ou Alfred Hitchcock em serviços. São nomes que fazem parte da história do cinema. Pensando nisso, como a indústria pode atuar para que essa história não se apague? 

Eu sou um fã de filmes antigos. Estudei crítica de cinema, amo cineastas japoneses como Ozu e Kurosawa. Estou mostrando Hitchcock aos meus filhos agora, e acho que em breve, veremos uma mudança no mercado. Aos poucos, os detentores dos direitos de filmes clássicos vão entender o poder de licenciar globalmente o seu conteúdo. O streaming é um negócio que vai durar para duas, três ou quatro décadas, pelo menos. Estamos aqui para durar. 

E nessas três ou quatro décadas, ainda veremos conteúdo em uma tela de TV? 

Acredito que sim. Ainda podemos melhorar muito a experiência da TV, em termos de cor e resolução. É uma forma ainda muito atraente para o nosso cérebro. Ainda vamos levar muito tempo até chegarmos a um jeito alternativo de contar histórias, com conexões cerebrais ou óculos como o holodeck de Star Trek – pelo menos até onde consigo ver. 

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